quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Publicar nome de vítima de estupro gera dano moral

Jornal condenado

13 fevereiro 2013 por consultor jurídico


Consagrada pela Constituição, a liberdade de informação pode ser limitada pelo direito à privacidade e à honra. Por isso, um jornal de Volta Redonda foi condenado a pagar R$ 20 mil em indenização a uma mulher, vítima de estupro, que teve seu nome e idade divulgado em uma notícia sobre o crime. A decisão é da 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

O caso chegou ao colegiado por recursos das duas partes. A vítima, pedindo o aumento do valor da indenização, antes fixada em R$ 5.450. Já o jornal tentava reverter a condenação ou reduzir o valor.

Em seu voto, a desembargadora Cláudia Telles, relatora do processo, afirmou que o periódico extrapolou sua liberdade de informação ao revelar a identidade da vítima do estupro, uma vez que esses dados são irrelevantes ao interesse do público.

“Neste caso, o direito de informação se sobrepôs às outras garantias constitucionais, violando a intimidade, a vida privada e a imagem da recorrida”, escreveu a desembargadora.

O fato de o jornal circular em 15 cidades da região de Volta Redonda foi apontado pela relatora para aumentar ainda mais a exposição da mulher, “acarretando mais sofrimento, como se não bastasse aquele resultante da crueldade por ela sofrida.”

Para justificar o aumento do valor da indenização, a desembargadora considerou também se tratar de um jornal de grande circulação e que a quantia fixada pelo juízo de primeira instância não era razoável para reparar o dano moral sofrido pela vítima.

Clique aqui para ler a decisão.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

A violência contra as mulheres de forma mais ampla: uma questão de cultura

bule voador

Embora a discussão, os estudos e a legislação sobre violência contra as mulheres atualmente englobem as várias formas de manifestação (violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral), o grande foco encontra-se nos atos violentos visíveis, que deixam marcas físicas nas vítimas e praticamente não consideram a violência simbólica como prejuízo real às mulheres em situação de violência.

Faz-se necessário, portanto, que o enfrentamento à violência contra as mulheres seja conjugado a uma discussão ampla, capaz de desvendar e desconstruir as amarras da cultura milenar que estruturou e consolidou as desigualdades de gênero. Cultura aqui compreendida como um sistema simbólico formado por linguagem, arte, moral, direito, costumes, crenças religiosas, etc, que garante/reproduz a integração social. São esses sistemas simbólicos que conferem sentido ao social e possibilitam consensos sobre a ordem estabelecida.

A violência pode ocorrer sem nenhuma agressão verbal, manifestando-se com gestos, atitudes, olhares
Vários elementos simbólicos funcionam como mecanismos eficientes de reprodução do patriarcado, tanto na esfera pública quanto na privada. A noção de “violência simbólica” busca traduzir a infinidade de discursos sobre o feminino (mulher), e suas relações com o masculino (homem).

Esses enunciados, de forma rotineira e quase imperceptível, orientam ações, difundem modelos referenciais, valores e julgamentos que, vinculados à prática social, dão sentido às construções dos sujeitos e reelaboram e reafirmam identidades.

A isso, Segato (2003) define como “violência moral”: “Todo aquello que envuelve agresión emocional, aunque no sea ni consciente ni deliberada. Entran aquí la ridicularización, la coacción moral, la sospecha, la intimidación, la condenación de la sexualidad, la desvalorización cotidiana de la mujer como persona, de su personalidad y sus trazos psicológicos, de su cuerpo, de sus capacidades intelectuales, de su trabajo, de su valor moral” (Rita Laura Segato, Las estructuras elementares de la violencia, Buenos Aires, Universidad de Quilmes, 2003, p.115).

Tal como observa a autora, esse tipo de violência pode ocorrer sem nenhuma agressão verbal, manifestando-se com gestos, atitudes, olhares. É uma violência naturalizada, porque está presente nos mesmos processos de socialização que ensinam aos sujeitos como se comportarem em sociedade.

Dizer que pode ocorrer sem nenhuma agressão (verbal ou física) não tira o prejuízo que causa a toda sociedade que, se estruturada num sistema de status que inferioriza um dos sexos, acaba por legitimar outros tipos de violência, como a sexual. Pois o corpo da mulher, por muito tempo visto como domínio do homem, gerou uma cultura em que o uso e abuso desse corpo, quando realizado pelo “dono” (pai, marido, parente), é considerado legítimo, mesmo que tal situação não esteja mais prevista na legislação vigente.
A Campanha 16 Dias de Ativismo, edição 2009, é justo uma ferramenta para sensibilização de homens e mulheres para que percebam e alterem comportamentos e atitudes causadores de violências contra as mulheres. Junte-se a nós! Comprometa-se! Tome uma Atitude! Exija seus direitos! Afinal, uma vida sem violência é um direito das mulheres!

Formas de violência contra as mulheres 

As práticas de violência contra as mulheres ocorrem em todos os lugares, tanto no âmbito familiar quanto no espaço de trabalho, introduzindo-se em relações de camaradagem, afeto, amizade, amor, companheirismo, profissionais, entre outras.
Vários são os tipos de conduta que devem ser entendidas como violências. A partir da Convenção de Belém do Pará, e também da Lei 11.340/2006, Lei Maria da Penha (criada para prevenir, punir e erradicar a violência doméstica e familiar contra as mulheres), as formas mais comuns são: violências física, sexual, psicológica, moral, patrimonial, que se manifestam geralmente assim:

Violência física: agressões ao corpo por meio de socos, empurrões, beliscões, mordidas, chutes, ou pelo uso de armas.

Violência sexual: é aquela em que a mulher é obrigada a presenciar ou praticar relações sexuais não desejadas. Acontece quando é induzida à exploração de sua sexualidade, tolhida na sua liberdade sexual e reprodutiva, forçada a engravidar, a abortar, a prostituir-se ou a contrair matrimônio. Mesmo no casamento, obrigar a mulher a manter relações sexuais contra sua vontade, é crime de violação de direitos humanos previsto em lei.

Violência psicológica: constrangimentos, humilhações feitas em público ou em casa, controle exagerado das ações da mulher que a impeçam de tomar qualquer decisão ou de se relacionar com outras pessoas, são condutas que abalam o emocional e a auto-estima.

Violência moral: ações que afetam a imagem da mulher diante da comunidade ou diminuem o conceito que ela tem de si mesma, como palavras ofensivas, acusações conscientemente falsas, xingamentos e desqualificações.

Violência patrimonial: o quebra-quebra de móveis, eletrodomésticos e objetos da casa, bem como o ato de reter ou destruir documentos pessoais, materiais de trabalho e outros pertences de uso pessoal.

Uma vida sem violência é um direito das mulheres. Comprometa-se.
Tome uma atitude. Exija seus direitos.

Violência contra a mulher, um problema de saúde pública

27/11/2009

 carta maior

Um grande empecilho, por muito tempo, para a formulação e execução de programas e políticas que enfrentem o problema da violência contra mulheres é justamente a crença arraigada de que a violência no âmbito doméstico contra mulheres ou meninas era um problema da ordem do privado e familiar. Este problema, no Brasil, pode ser visto na expressão popular “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”. A violência contra a mulher é, na verdade, um problema de saúde pública. No Brasil, uma em cada cinco mulheres (20%) já sofreu algum tipo de violência física, sexual ou outro abuso praticado por um homem. O artigo é de Andréa Fachel Leal.

 
 
Desde 1999, a Organização das Nações Unidas (ONU) proclamou que 25 de Novembro é o Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres.

Que importância tem essa data? Por que um dia especial?

É bom lembrar que esse é um problema de muitas pessoas. As mulheres constituem pelo menos metade da população mundial. Em algumas faixas etárias, como a dos idosos, são mais da metade das pessoas. Em todo o mundo, as mulheres têm maior expectativa de vida do que os homens. As mulheres sobrevivem aos homens, mas não podemos concluir que as mulheres tenham melhores condições de saúde do que eles.

Apesar de tantas mulheres no planeta, elas foram apenas muito recentemente reconhecidas como sujeitos plenos de direitos: na Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, ocorrida em Viena em 1993, declarou-se que os direitos das mulheres são direitos humanos. Acabaram-se as fronteiras entre o espaço público e o espaço privado como resultado, por um lado, de uma forte atuação do movimento organizado de mulheres, e por outro, das atrocidades cometidas na Guerra da antiga Iuguslávia, onde o estupro sistemático e em massa de mulheres foi empregado como estratégia de guerra. A violência doméstica e o estupro, crimes cometidos majoritariamente contra mulheres, foram declarados como crimes contra os direitos da pessoa humana.

Na definição da Convenção de Belém do Pará (Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, adotada pela Organização dos Estados Americanos, OEA, em 1994),

a violência contra a mulher é 
“qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, 
dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, 
 tanto na esfera pública como na esfera privada”.


A violência contra a mulher é um problema de saúde pública. É necessário que estudantes (e profissionais já atuantes) na área da saúde sejam instrumentalizados e capacitados a atenderem as mulheres que chegarem aos serviços de saúde, vítimas de violência.

Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), “as conseqüências do abuso são profundas, indo além da saúde e da felicidade individual e afetando o bem-estar de comunidades inteiras”. A violência de gênero é um problema que afeta a saúde física e mental das mulheres, e que tem consequências econômicas e sociais.

É importante salientar que a violência contra mulheres ocorre num contexto específico dado por relações de gênero. Não é por acaso que as mulheres são as maiores vítimas. Não é tampouco porque as mulheres naturalmente sejam mais frágeis ou submissas. A violência contra as mulheres ocorre no contexto social e histórico em que as mulheres são discriminadas, tendo menor acesso à educação, a recursos materiais e simbólicos e a poder, tanto no âmbito privado quanto no público.

Deve-se enfatizar que um grande empecilho, por muito tempo, para a formulação e execução de programas e políticas que enfrentem o problema da violência contra mulheres é justamente a crença arraigada de que a violência no âmbito doméstico contra mulheres ou meninas era um problema da ordem do privado e familiar. Este problema, no Brasil, pode ser visto na expressão popular “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”.

A lei promulgada no Brasil que trata especificamente sobre a violência contra a mulher, conhecida como a Lei Maria da Penha, é recente: data de 2006 (Lei 11.340, 7 de agosto de 2006). A partir da Lei Maria da Penha, foram criados Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher nos estados,pelos Tribunais, com o respaldo de recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de 2007 (Recomendação Nº 9, de 06 de março de 2007 do CNJ).

Vejamos alguns dados importantes sobre a violência contra mulheres, da Organização Mundial de Saúde (OMS), das Nações Unidas (UNFPA) e do Brasil:

* Todos os anos, mais de 1,6 milhões de pessoas morrem no mundo, vítimas de violência. Para cada pessoa que morre vítima da violência, muitas outras sofrem, sendo incapacitadas ou sofrendo por problemas físicos, sexuais, reprodutivos ou de saúde mental. No mundo todo, a violência é uma das principais causas de mortalidade para pessoas com idade entre 15 e 44 anos. Isto significa que mais de 4400 pessoas morrem diariamente, vítimas de violência.

* No mundo todo, a violência praticada contra mulheres envolve uma série de violações aos seus direitos humanos: tráfico de mulheres e de meninas, estupro, abuso físico, abuso sexual de mulheres e de crianças e também práticas tradicionais que implicam problemas permanentes para a sua saúde sexual e reprodutiva de meninas.

* Uma das formas mais comuns de violência contra mulheres é a violência praticada pelo parceiro íntimo. Isto signifca que as mulheres sofrem violência dos maridos, namorados ou companheiros – atuais ou passados. Outros homens que também mantêm uma relação íntima ou próxima com as mulheres e que muitas vezes são os seus agressores incluem pais, irmãos, padrastos. O espaço doméstico, da casa, por isso mesmo, pode ser considerado um dos espaços mais perigosos para meninas e mulheres.

* As consequências da violência para a saúde das mulheres podem ser diretas ou de longo prazo. Incluem:

- danos e feridas por violência física ou sexual; morte (incluindo o suicídio e a mortalidade materna, resultado de abortos inseguros);

- contaminação por infecções sexualmente transmissíveis e HIV/AIDS;

- gravidez indesejada;

- problemas de saúde mental (depressão, stress, problemas de sono, problemas de alimentação, problemas emocionais, uso e abuso de substâncias psicoativas e álcool);

- problemas físicos de médio e longo prazo (dor de cabeça, dor lombar, dor abdominal, fibromialgia, problemas gastrointestinais, problemas de locomoção e mobilidade).

* Muitas das mulheres que recorrem aos serviços de saúde, com reclamações de enxaquecas, gastrites, dores difusas e outros problemas, vivem situações de violência dentro de suas próprias casas – é extremamente importante que profissionais de saúde sejam capacitados para identificar, atender e tratar pacientes que se apresentam com sintomas que podem estar relacionados a abuso e agressão.

* A dimensão mais trágica da violência contra as mulheres são os assassinatos. De cada duas duas mulheres que morrem vítimas de homicídio no mundo, uma delas é morta pelo seu parceiro íntimo (40 a 70%), homens, em geral no contexto de uma relação abusiva.

* Uma forma específica de violência contra mulheres é o abuso sexual. Uma em cada quatro mulheres do mundo sofrem abuso sexual, perpetrado por um parceiro íntimo, ao longo de suas vidas.

* A prevalência de abuso físico ou sexual sofrido ao longo da vida por mulheres varia de 15% a 71% mundialmente.

* Na América Latina e Caribe, a violência doméstica atinge entre 25% a 50% das mulheres.

* As causas externas são a terceira causa de mortalidade no Brasil como um todo, o que aponta para a violência como um grave problema de saúde pública. A violência em geral pode ser exercida por diferentes agentes (por exemplo, policiais), contra diversas populações (o racismo é um exemplo de violência contra uma determinada população com base na cor da pele ou etnia) e pode ocorrer em muitos espaços (como a escola ou o espaço doméstico).

* No Brasil, uma em cada cinco mulheres (20%) já sofreu algum tipo de violência física, sexual ou outro abuso praticado por um homem.

Quanto às consequências econômicas e sociais da violência contra mulheres, segundo dados do Banco Mundial (BM) e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BIRD):

* Um em cada 5 dias de falta ao trabalho no mundo é causado pela violência sofrida pelas mulheres dentro de suas casas.

* A cada 5 anos, a mulher perde 1 ano de vida saudável se ela sofre violência doméstica.

* As mulheres com idade entre 15 e 44 anos perdem mais anos de vida saudável (“disability- adjusted life year" ou DALY) em função do estupro e da violência doméstica do que em razão de cancer de mama, cancer de colo de útero, problemas relacionados ao parto, doenças coronárias, AIDS, doenças respiratórias, acidentes de automóveis ou a guerra (World Development Report of the World Bank, 1993). O estupro e a violência doméstica são causas importantes de incapacidade e morte de mulheres em idade produtiva.

* Mulheres vítimas da violência podem sofrer com isolamento social, incapacidade para trabalhar, ficarem sem remuneração ou com menor remuneração, incapacidade para participar em atividades na comunidade e terem sua capacidade de cuidar de si mesmas e de seus filhos diminuída. Uma mulher que sofre violência doméstica geralmente ganha menos do que aquela que não vive em situação de violência.

* No Canadá, um estudo estimou que os custos da violência contra as mulheres superam 1 bilhão de dólares canadenses por ano em serviços, incluindo polícia, sistema de justiça criminal, aconselhamento e capacitação.

* Nos Estados Unidos, um levantamento estimou o custo com a violência contra as mulheres entre US$ 5 bilhões e US$ 10 bilhões ao ano.

* Segundo o Banco Mundial, nos países em desenvolvimento, estima-se que entre 5% a 16% de anos de vida saudável são perdidos pelas mulheres em idade reprodutiva como resultado da violência doméstica.

* Um estudo do Banco Interamericano de Desenvolvimento estimou que o custo total da violência doméstica oscila entre 1,6% e 2% do PIB de um país.

A violência pode ser física, psicológica, moral, sexual, patrimonial, institucional, social, econômica, política ou estatal. A violência física é definida como ação ou omissão que coloque em risco ou cause dano à integridade física de uma pessoa. A psicológica, como ação ou omissão destinada a degradar ou controlar as ações, comportamentos, crenças e decisões de outra pessoa por meio de intimidação, manipulação, ameaça direta ou indireta, humilhação, isolamento ou qualquer outra conduta que implique prejuízo à saúde psicológica, à autodeterminação ou ao desenvolvimento pessoal. A violência moral é aquela destinada a caluniar, difamar ou injuriar a honra ou a reputação de uma pessoa.

Violência sexual é o termo que se aplica a casos de estupro; abuso sexual denomina a violência sexual praticada principalmente contra crianças e adolescentes, por adultos. O assédio sexual é um ato de poder, onde uma pessoa se aproveita da condição de estar em posição superior no trabalho (ou escola, ou igreja, etc) para obrigar outra pessoa a aceitar suas propostas sexuais, mediante constante ameaça de demissão, rebaixamento salarial ou outra forma de perseguição; na maioria das vezes, ocorre por parte de homens contra mulheres. A violência patrimonial é qualquer ato de violência que implique dano, perda, subtração, destruição ou retenção de objetos, documentos pessoais, bens e valores.

A violência institucional é todo tipo de violência motivada por desigualdades (de gênero, étnico-raciais, econômicas etc.) predominantes em diferentes sociedades. Essas desigualdades se formalizam e institucionalizam nas diferentes organizações privadas e aparelhos estatais, como também nos diferentes grupos que constituem essas sociedades.

Qual a especificidade afinal da violência contra a mulher?

Há vários tipos ou formas de violência contra as mulheres. As mulheres podem sofrer violência física, psicológica, moral, sexual, patrimonial, institucional, entre outras. Para a Organização Mundial de Saúde são atos de violência:

* Estapear, sacudir, bater com o punho ou com objetos, estrangular, queimar, chutar, ameaçar com faca ou revólver, ferir com armas ou objetos e, finalmente, matar.

* Coerção sexual através de ameaças, intimidação ou uso da força física; forçar atos sexuais não desejados, com outras pessoas ou na frente de outras pessoas.

* Ciúme excessivo, controle das atividades da mulher, agressão verbal, destruição da propriedade, perseguição, ameaças, depreciação e humilhação.

* Violência de gênero – violência sofrida pelo fato de se ser mulher, sem distinção de raça, classe social, religião, idade ou qualquer outra condição, produto de um sistema social que subordina o sexo feminino. Envolve uma relação de poder, onde o homem é dominante e agressivo e a mulher deve estar em posição de submissão e ser dócil; os homens buscam controlar as mulheres no que diz respeito aos seus desejos, opiniões e corpos (inclusive a sua liberdade de ir e vir).

Violência contra a mulher é qualquer conduta – ação ou omissão – de discriminação, agressão ou coerção, ocasionada pelo simples fato de a vítima ser mulher e que cause dano, morte, constrangimento, limitação, sofrimento físico, sexual, moral, psicológico, social, político ou econômico ou perda patrimonial. Essa violência pode acontecer tanto em espaços públicos como privados.

Por fim, é preciso mencionar duas formas de violência que se definem pelo espaço em que ocorrem ou pelos agentes que as praticam – a violência doméstica e a intrafamiliar.

Violência doméstica – forma de violência definida pelo espaço em que ocorre. Violência que ocorre em casa, no ambiente doméstico. Portanto, a violência doméstica pode ocorrer nas relações entre as pessoas da família. Esta denominação mascara o fato de que independente da faixa etária das pessoas que sofrem violência física ou verbal, as mulheres (crianças, adultas e idosas) são as principais vítimas na violência doméstica. O lar é um espaço extremamente perigoso para as mulheres. A violência e as ameaças de violência limitam as mulheres na sua capacidade de negociar o sexo seguro.

Violência intrafamiliar – forma de violência definida pelas relações violentas que ocorrem entre membros da própria família (pai, mãe, filhos, marido, esposa, sogro/a, padrasto, madrasta, etc.). Entre as vítimas da violência intrafamiliar estão mulheres, crianças, idosos e deficientes. Na maioria das vezes, essa forma de violência ocorre no espaço privado. Inclui abuso físico, sexual e psicológico, a negligência e o abandono. A violência conjugal é uma forma de violência intrafamiliar: é a violência nas relações de casais (ou ex-cônjuges). A crítica a essa terminologia está em que também esconde o fato de que a principal vítima dessa violência é a mulher.

Estudos organizados pelas Nações Unidas revelam que 98,4% das vítimas de violência intrafamiliar na Bolívia e 85% das vítimas no Chile são mulheres.

A violência física, psicológica, sexual, moral, patrimonial, doméstica, intrafamiliar, entre outras, são diferentes práticas que podem ser enquadradas como formas de violência de gênero. A violência é uma violação de direitos humanos das mulheres que atinge pessoas de as classes, grupos étnicos e faixas etárias.

 

Fontes consultadas:

Brasil. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), especialmente dados sobre a população e indicadores de saúde (cf. http://ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/indic_sociosaude/2009/indicsaude.pdf)

Brasil. Ministério da Saúde do Brasil. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Análise de Situação em Saúde. Saúde Brasil 2007. Uma análise da situação de saúde. Brasília, Ministério da Saúde: 2008.

Campbell JC. Health consequences of intimate partner violence. Lancet, 359: 1331–36, 2002.

Estados Unidos da América. United States Department of Justice. Office on Violence Against Women. http://www.ovw.usdoj.gov

Fundo das Nações Unidas para as Populações. UNFPA: Violence againts girls and women: a public health priority. http://web.unfpa.org/intercenter/violence/index.htm

Garcia-Moreno C, Jansen HAFM, Ellsbert M, Watts CH. Prevalence of intimate partner violence: findings from the WHO multi-country study on women’s health and domestic violence. Lancet, 368: 1260-1269, 2006.

International Conference on Population and Development (ICPD), Cairo, 1994.

Nações Unidas. Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination Against Women. United Nations General Assembly, 1979.

Organização Mundial de Saúde. Guidelines for medico-legal care for victims of sexual violence. Gender and Women’s Health, Family and Community Health. Injuries and Violence Prevention, Noncommunicable Diseases and Mental Health. World Health Organization: Geneva, 2003. Disponível online no site da OMS (http://www.who.int)

Organização Mundial de Saúde. WHO Multi-country Study on Women’s Health and Domestic Violence against Women. Initial results on prevalence, health outcomes and women’s responses. Initial results on prevalence, health outcomes and women’s responses. World Health Organization, Geneva: 2005.

Organização Mundial de Saúde. Women and Health. Today’s Evidence, Tomorrow’s Agenda. World Health Organization: Geneva, 2009. Disponível online no site da OMS (http://www.who.int)

Organização Mundial de Saúde. World Report on Violence and Health. Edited by Etienne G. Krug, Linda L. Dahlberg, James A. Mercy, Anthony B. Zwi and Rafael Lozano. World Health Organization: Geneva, 2002. Disponível online no site da OMS (http://www.who.int)

REDE Interagencial de Informação para a Saúde. Indicadores Básicos para a Saúde no Brasil: Conceitos e Aplicações. Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS): 2008.

Rio Grande do Sul. Fundação de Economia e Estatística (FEE), especialmente estatísticas de população (cf. http://www.fee.tche.br/sitefee/pt/content/estatisticas/pg_populacao.php)

UN Fourth World Conference on Women, Beijing, 1995.


 
Para saber mais:

Agência Patrícia Galvão - http://www.agenciapatriciagalvao.org.br

AGENDE - Ações em Gênero, Cidadania e Desenvolvimento. http://www.agende.org.br/

Anis - Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero. http://www.anis.org.br/

Articulação de Mulheres Brasileiras. http://www.articulacaodemulheres.org.br/

Brasil. Presidência da República. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. http://www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/sepm/

Católicas pelo Direito de Decidir. http://catolicasonline.org.br

CEPIA - Cidadania Estudo Pesquisa Informação e Ação. http://cepia.org.br

CFEMEA - Centro Feminista de Estudos e Assessoria. http://www.cfemea.org.br/

Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde - http://www.mulheres.org.br/

CRIOLA. http://www.criola.org.br/

Gelédes Instituto da Mulher Negra. http://www.geledes.org.br/

International Women’s Health Coalition - http://www.iwhc.org/index.php

Maria Mulher - Organização de Mulheres Negras. http://www.mariamulher.org.br/

Rede Feminista de Saúde - http://www.redesaude.org.br/

S.O.S. Corpo: Instituto Feminista para a Democracia. http://www.soscorpo.org.br/

Saúde da Mulher - http://portal.saude.gov.br/portal/saude/area.cfm?id_area=152

Secretaria Especial dePolíticas para Mulheres - http://www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/sepm/

Teles MAA, Melo M. O que é Violência contra a Mulher? Coleção Primeiros Passos, 314. São Paulo: Brasiliense, 2003.

Themis - Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero. http://www.themis.org.br

 
Andréa Fachel Leal é professora do curso de Medicina e do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA) Contato: DEA.LEAL@GMAIL.COM

Quando os estupros vão chocar a África do Sul? (BBC Brasil)

Grito de Ana

Sul-africanos se acostumaram com o fato de terem sociedade violenta
 
O jovem de 22 anos estava sentado dentro de um bar improvisado no bairro de Soweto, poucos dias antes do Ano Novo, quando a polícia apareceu atrás dele.
 
Segundo testemunhas, o jovem tinha acabado de atacar e estuprar uma menina de 17 anos em sua mesa de bar, mas aparentemente considerou o incidente tão trivial que sequer tentou fugir.
 
Os demais frequentadores do bar, exceto pela vítima, nem se deram ao trabalho de chamar a polícia.
 
Num momento em que a Índia está reexaminando sua sociedade por conta do estupro coletivo seguido de morte de uma jovem, a África do Sul parece continuar anestesia – incapaz de reagir coletivamente diante de estatísticas quase inacreditáveis e, aparentemente, muito piores do que as indianas.
 
Na África do Sul, quase 60 mil estupros são denunciados anualmente à polícia, o que é mais do dobro das denúncias na Índia (cuja população é 24 vezes maior que a sul-africana).
 
E especialistas acreditam que o número real de estupros seja ao menos dez vezes maior, ou 600 mil ataques ao ano.
 
 
Indignação isolada

Não é que a questão seja ignorada – longe disso.
Nesta semana, jornais sul-africanos estão reportando histórias assustadoras do que é descrito como uma nova tendência: o estupro de avós idosas, principalmente em comunidades rurais. Duas senhoras, de 82 e 73 anos, foram atacadas em 2 de janeiro.
 
Mas, apesar da indignação expressada pelos colunistas de jornais e por ouvintes das rádios locais, não foi criado na sociedade um sentimento unido de reação.
 
Recentemente, comentaristas e ativistas olharam para os desdobramentos na Índia quase com inveja, questionando-se quanto ao que pode ter provocado o atual sentimento de indignação coletiva e o debate sobre quem (ou o que) culpar – a história, as drogas, a pobreza…
 
“Ninguém vai me convencer de que o estupro de um bebê de três meses 
ou de uma vovó de 87 anos é causado pela pobreza, 
nem a queima de uma biblioteca ou o vandalismo de uma escola”, 
 disse recentemente pelo Twitter a sindicalista sul-africana Zwelenzima Vavi.
 
 
“Talvez o estupro esteja na nossa cultura, como parte da cultura patriarcal”, 
disse à BBC a empresária e ativista Andy Kawa, que foi vítima de um estupro coletivo.
 
“É algo cotidiano. Acontece nos lares. Mas (é cercado de) silêncio por causa do medo; porque o estuprador, na maioria das vezes, detém o poder”, afirmou.
 
Mpumelelo Mkhabela, editor de um jornal de Soweto, diz que “o governo está fazendo o que pode, mas também precisamos que os cidadãos entrem na briga e assumam a campanha, em vez de ficarem apenas momentaneamente indignados”.
 
 
Sociedade violenta

Talvez a única certeza seja a de que a África do Sul é, há décadas, uma sociedade violenta, e as pessoas se acostumaram com isso.
 
Em muitas comunidades, jovens mulheres dizem que praticamente esperam ser abusadas, enquanto jovens homens crescem com um perigoso sentido de posse sobre elas.
 
Nesta semana, houve poucas reações públicas, exceto pela causada por algumas notícias de jornais, quando veio à tona a história de uma mulher de 21 anos foi vítima de um estupro coletivo na última terça-feira, durante sua viagem para se matricular em uma universidade nos arredores de Pretória.
 
Ela foi arrastada para uma mata por quatro homens ainda não identificados. Ela sobreviveu ao ataque.
 
 No dia seguinte, a BBC foi à entrada da universidade conversar com outros estudantes. A maioria dos consultados não tinha ouvido nada a respeito do estupro, e nenhum pareceu nem um pouco surpreso. Estavam mais preocupados com guardar seu lugar na fila da universidade.
 
“Não estamos protegidas, não nos sentimos seguras”, disse uma estudante.
 
Um passante acrescentou: “Há muitos estupradores por aqui”.
 
Então, a jovem pensou por um momento, olhou para seus amigos e disse baixinho: “Não sei o que está errado com os homens. 
Algo precisa ser feito a respeito deles”.
 
Andrew Harding
Correspondente da BBC News na África
 

Projeto Mulher Viva, uma luta pelo fim da violência contra a mulher dentro das igrejas.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010


Entrevista com Naiá Duarte

 


 

O Projeto Mulher Viva (http://www.mulherviva.com/) é uma esperança para mulheres que são violentadas dentro das igrejas cristãs e que são escravas da vergonha, da dor, da ignorância, da humilhação e do medo. 
A violência física, emocional, psicológica e moral as vezes são cometidas por aqueles que pregam a mensagem do Evangelho de Cristo que, em momento algum, defende a opressão do homem sobre a mulher e sim o amor do marido pela esposa ao ponto de sacrificar a própria vida. Que as palavras dessa ativista social pelo fim de toda forma de violência contra a mulher inspire mulheres e homens a se juntarem por essa causa.
1 - Quem é Naiá Duarte (suas referências) e há quanto tempo você luta pelo fim da violência contra a mulher?
Naiá Duarte: Sou santista, formada em Direito e História com especializações na área de educação e filosofia, casada e mãe de 2 filhos. Luto pelas causas sociais há 10 anos e especificamente contra violência há 3 anos.



2 - O que te levou a militar pelas mulheres vítimas de violência?
Naiá Duarte: Observando as mulheres dentro da igreja. Como uma mulher liberta em Jesus de Nazaré pode se deixar escravizar por textos fora do contexto como Efésios 5: 22¹ daí foi um pulo ao constatar a violência no âmbito eclesiástico (física, psicológica, patrimonial).


Efésios 5
22 - Vós, mulheres, sujeitai-vos a vosso marido, como ao Senhor;
23 - porque o marido é a cabeça da mulher, como também Cristo é a cabeça da igreja, sendo ele próprio o salvador do corpo.
24 - De sorte que, assim como a igreja está sujeita a Cristo, assim também as mulheres sejam em tudo sujeitas a seu marido.



3 - Aconteceu algum fato específico que te levou a dedicar sua vida a essa causa?

Naiá Duarte: Sim, quando compreendi que algumas mulheres sofrem violência por não saberem ou por serem influenciadas por textos fora do contexto em um “púlpito viciado” dominador e machista eu contatei meu amigo Pr. Ariovaldo Ramos e pedi sua orientação como poderíamos através da Palavra Sagrada minorar o sofrimento de mulheres que sofrem violência dentro e fora da igreja.


4 - O que te motivou a abordar o tema no contexto das mulheres cristãs? Há violência dentro das igrejas evangélicas?

Naiá Duarte: É triste falar, mas existe e muito. Vou citar um exemplo de uma pastora:
“Naiá, o que eu faço? Meu marido é pastor e em casa me bate e me humilha. Eu disse:
Como na sua igreja existe um pastor presidente vá até ele e conte o que está acontecendo.
Ela foi e o pastor presidente disse que iria pensar no assunto e que em breve daria uma resposta.
Dois dias se passaram e o marido pastor foi chamado ao gabinete do presidente de uma grande igreja evangélica pentecostal.
Fulano pastor entende de Deus que você e sua família deveriam pastorear uma igreja a 500 km daqui. O fulano pastor todo feliz pegou sua esposa violentada e seus filhos e foram “pastorear” em um lugar longe dali e que não levantasse suspeitas. Em nenhum momento foi abordado ou tratado o assunto por eles.

Quando a pastora me telefonou dizendo o que tinha acontecido eu fiquei indignada e me pus à disposição e ela me perguntou novamente e agora? “Sabemos que não podemos decidir pela pessoa, disse que a minha preocupação era com a integridade física dela e aconselhei a denunciá-lo.”


5 - Como tem sido recebido o seu trabalho, através do Projeto Mulher Viva, nas igrejas pelos pastores e liderança? Há uma resistência e na sua opinião a que ela se deve?
Naiá Duarte: A Mulher Viva tem sido bem aceito por igrejas sérias na Palavra e que entendem que o pecado pode vir a transformar maridos que deveriam proteger suas esposas em verdadeiros lobos ferozes. Algumas igrejas onde o estudo da língua original e da história da igreja não é alvo de atenção a pregação é superficial, dominadora e excludente.


6 - Como é a reação das mulheres cristãs ao seu trabalho? Elas se sentem encorajadas a relatar as violências sofridas?
Naiá Duarte: A reação normalmente é positiva mais o fato de relatar a violência ocorre depois de um a dois meses da palestra proferida, ou seja, a vitima me liga ou manda um email querendo saber como ela pode orientar sua vizinha que sofre espancamentos. Oriento por telefone ou email e peço para marcar um encontro com a vitima e na maioria das vezes vem ela com a vizinha acompanhando.


7 - Você possui algum dado estatístico sobre a violência contra a mulher no meio evangélico?
Naiá Duarte: De acordo com a Casa de Isabel (ONG na zona leste da capital) 80 % das mulheres atendidas lá são evangélicas de igrejas neo-pentescostais, pentecostais e históricas.


8 - Você trabalha ou pretende trabalhar com a conscientização do homem cristão sobre a problemática da violência contra a mulher? Se trabalha como é ou seria desenvolvida essa abordagem?
Naiá Duarte: Não trabalho diretamente com o homem agressor mais encaminho se ele quiser para tratamento psicológico e espiritual. Entendo que o homem agressor precisa de tratamento e amor.


9 - Fale sobre o Projeto Mulher Viva. ( desde quando ele existe? como foi criado? qual objetivo? quais as ações e programas? quais as conquistas?...)
Naiá Duarte: O Projeto Mulher Viva nasceu no morro São Bento em Santos/SP por ocasião de uma palestra feita por mim sobre Direitos das Mulheres em 2007. Uma chama acendeu em mim e comecei a olhar para as mulheres com varias interrogações:
Por que a mulher aceita a violência?
Por que o púlpito é usado na maioria das vezes por homens?
Por que em casamentos aconselha-se a mulher a ser submissa e não aconselha o homem a amá-la e morrer por ela se necessário for. (efésios 5:22-30)
E após esses questionamentos criei junto com meu esposo advogado e pastor Cícero Duarte o Mulher Viva que tem como objetivo que toda mulher viva sem violência. Trabalhamos com a conscientização e prevenção da violência através de palestras, fóruns e oficinas. Ano passado (2009) atendemos 28 mulheres e alcançamos um publico de mais de 7000 pessoas.
Nossa meta para 2010 é atender 100 mulheres e firmar parcerias com objetivo de servir melhor a mulher vitimada.

10 - Qual a sua opinião sobre a utilização dos blogs como ferramenta de atuação na luta contra toda e qualquer violência contra a mulher?
Naiá Duarte: Esperança


11 - Deixa a sua mensagem para os leitores do blog "O grito de Ana" sobre essa atrocidade que é a violência contra a mulher praticada no mundo.Naiá Duarte: Não podemos nos conformar com qualquer forma de violência contra qualquer pessoa, precisamos nos apoiar e lutar pelo direito a vida e ao amor, somente quando entendemos que a vida é o bem mais precioso que temos e que não podemos dispor dela porque esta é uma prerrogativa do altíssimo, compreenderemos que somos nós que devemos lutar pela vida e proteger nossa integridade; tendo como paradigma Jesus Cristo que rompeu a Lei do Silêncio denunciando e permitindo que suas discípulas estudassem, evangelizassem pregasse, ou seja, que pudessem exercer seus dons de uma forma integral.

Entrevista – Maria da Penha

Fonte: Revista TPM
Autor: Décio Galina
Editor: Pena Ajena

 

A mulher que sobreviveu à tentativa de assassinato pelo marido e virou nome de lei
11.03.2009

Maria da Penha Maia Fernandes é uma sobrevivente. 
Seu marido tentou matá-la duas vezes. 
A primeira, com um tiro nas costas que a deixou paraplégica. 
A segunda, eletrocutada no chuveiro. 
Ela foi à forra – além de prender o criminoso, 
batizou a lei que protege a mulher vítima da violência doméstica


Maria da Penha tem sono pesado. Capota e só acorda no dia seguinte. Na madrugada de 29 de maio de 1983, porém, teve seu repouso interrompido pelo pior pesadelo da vida. “Acordei de repente com um forte estampido dentro do quarto. Abri os olhos. Não vi ninguém. Tentei me mexer. Não consegui. Imediatamente fechei os olhos e um só pensamento me ocorreu: ‘Meu Deus, o Marco me matou com um tiro’. Um gosto estranho de metal se fez sentir forte na minha boca, enquanto um borbulhamento nas costas me deixou perplexa.”

Entre desmaios e devaneios, a mulher, então com 38 anos, tinha momentos de consciência. Por mais que estivesse acostumada com os gritos, as explosões de fúria e os empurrões do marido, Penha custava a acreditar que fora alvejada por um tiro de espingarda disparado pelo homem que escolheu para ser pai de suas três filhas (na época com 6, 5 e 1 ano e 8 meses). Não concebia tamanha covardia. “Quando os vizinhos chegaram ao meu quarto, demoraram a perceber o ferimento, pois eu estava de costas, com o sangue escorrendo no colchão.”

Para acobertar sua intenção diabólica de assassinar a própria mulher em pleno sono, Marco se fantasiou de vítima de um suposto assalto: rasgou o pijama, pôs uma corda no pescoço e disse para a polícia que havia sido atacado por uns bandidos. O teatro não funcionou. Mas a verdade demorou, demorou quase 20 anos a aparecer e levar o economista e professor universitário colombiano Marco Antonio Heredia Viveros para onde devia estar há tanto tempo: atrás das grades.

Os quatro meses seguintes após a tentativa de homicídio foram de cirurgias em hospitais de Fortaleza, onde Penha nasceu, e de Brasília. Maria da Penha Maia Fernandes, farmacêutica bioquímica formada pela Universidade Federal do Ceará e mestre em parasitologia pela USP, resistiu firme, mas sua vida não seria mais a mesma.

“Após vários exames, chegou a hora da avaliação que diria se eu ia voltar a andar ou não. Como profissional da saúde, antevia o fatídico diagnóstico. Como paciente, ousava sonhar, pedir aos meus santos... Enfim, declararam: nunca mais andaria.”

De volta para casa, na cadeira de rodas, Penha ainda teve que fazer força para escapar de outra atrocidade do marido: ele tentou eletrocutá-la embaixo do chuveiro. Marco, então, foi embora para ficar com uma amante no Rio Grande do Norte.



 Ela mudou a história
Maria da Penha transformou sua existência na luta pelos direitos das mulheres que sofrem com a violência doméstica. Em 2001, conseguiu que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) condenasse o Brasil por negligência e omissão pela demora na punição do marido.

Daí a semente para que, em 2006, o presidente Lula sancionasse a lei 11.340, a lei Maria da Penha, que cria mecanismos para coibir a violência familiar contra a mulher e prevê que os agressores sejam presos em flagrante ou tenham prisão preventiva decretada. Além disso, aumenta a pena máxima de um para três anos de detenção e acaba com o pagamento de cestas básicas , como acontecia anteriormente com os agressores.

Hoje, Penha é colaboradora de honra da Coordenadoria de Mulher da Prefeitura de Fortaleza, dá palestras em faculdades e recebe homenagens por todo o país.  Em um sábado de sol e calor (será que algum dia faz frio em Fortaleza?), Maria da Penha recebeu, em casa, a reportagem da Tpm para lembrar dos dias mais dramáticos e dos mais felizes de seus 63 anos.

“Na escola jogava vôlei, era levantadora, e pingue-pongue”
TPM. Como foi a sua infância em Fortaleza?
Maria da Penha. A minha mãe sempre procurou bons colégios. Ela primava em dar uma educação de valores, não só de instrução. Estudei em colégio dirigido por irmãs. Na hora de brincar, ia para a calçada, jogava bola, pulava corda. Dia de domingo a gente ia para a praia. Meu pai levava as amigas da gente junto numa caminhoneta. Ele gostava de pescar nas pedras.

TPM. O primeiro namorado apareceu logo?
MP. Ah, sim, eu era garota precoce, quer dizer, sempre fui muito alta para a minha idade. Quando tinha 12 anos, meu corpo já era de gente grande. Namorei uma pessoa que morava perto daqui. Acharam um absurdo. Tão nova, namorando. Só podia na morar depois dos 15 anos…

TPM. Praticava algum esporte?
MP. Sim, na escola jogava vôlei, era levantadora, e pingue-pongue. Cheguei a participar de campeonatos. Ano passado, ganhei medalhas em tênis de mesa para pessoas com deficiência.

TPM. Quando surgiu o desejo pela bioquímica?
MP. Queria uma área médica, mas não medicina, porque não iria conseguir enfrentar uma cirurgia. Minha avó sugeriu que fizesse farmácia. Fui para a área de análises clínicas. Sou da primeira turma da Faculdade de Farmácia e Bioquímica, de 1966, na Universidade Federal do Ceará.

TPM. Nesse período você morava com os pais?
MP. Não, aos 19 anos eu casei, movida por uma paixão violenta. Depois de mais ou menos um ano o casamento não deu certo. Eu querendo avançar, progredir nos estudos, e ele, muito machista, não aceitava o estudo, não aceitava trabalhar fora. Daí separei, viajei para continuar os estudos na USP, onde concluí o mestrado na área de parasitologia. Fiquei no apartamento de uma amiga. A vida universitária foi muito agradável.

“Mas aí ele começou a mostrar um comportamento agressivo”

TPM. Foi aí que você conheceu o seu segundo marido, o Marco Antonio?
MP. Foi. Ele era professor de economia. Chegou a São Paulo e foi morar no apartamento de um grupo que eu conhecia, estrangeiros da Colômbia, da Bolívia, da Venezuela, do Equador. O grupo era unido para passear, conversar, ir às festas.

TPM. O que te chamou a atenção nele?
MP. Achei a conversa interessante. Até o dia em que ele me levou ao cinema. Não lembro se foi na avenida Paulista ou no Iguatemi. Depois passou a ir ao apartamento que eu dividia com mais mulheres. Comecei a gostar do jeito dele de ser prestativo. Se tivesse um chuveiro elétrico quebrado, ele já ia consertando. Isso aí chamou a atenção inclusive da mãe de uma colega da Paraíba que passava temporada em São Paulo. Ela dizia: “Ah, se a minha filha arranjasse um namorado igual ao seu…”. Depois de alguns meses resolvemos juntar os mulambos. Como eu era desquitada, casamos na embaixada da Bolívia, onde tínhamos uns conhecidos. Minha primeira filha nasceu em São Paulo.

TPM. Você voltou antes para Fortaleza e ele veio te encontrar aqui alguns meses depois?
MP. Foi. Mas aí ele começou a mostrar um comportamento agressivo. Já estava grávida da segunda filha. Ele tinha um ciúme exagerado da minha família. Quando a segunda filha nasceu, os problemas aumentaram, a decepção também. Perto de a terceira filha nascer, ele começou a bater nas crianças. Já tinha perdido toda a esperança no relacionamento. Só me preocupava em evitar situações que pudessem incomodá-lo.

TPM. Você começou a fazer manobras para preservar as filhas…
MP. Exato. Tentei convencê-lo de uma separação. Era a única coisa que eu podia fazer. Não existia lei pra me proteger ou alguma coisa pra me orientar.

TPM. Você abria a sua situação para amigas? Pedia conselhos?
MP. Abria. Elas falavam que conheciam outros casos, que era assim mesmo. Diziam para eu começar a rezar.

“Na época, achava que poderia acontecer algo de grave comigo, mas me recusava a acreditar no assassinato”

TPM. O que ele dizia quando você tocava no assunto da separação?
MP. Desconversava. “Que besteira é essa? Separar por quê?” Quando percebia que ele chegava irritado na hora do almoço, eu nem comia e saía com as crianças.

TPM. Por que você acha que ele não aceitava a idéia da separação?
MP. Acho que ele já devia ter alguma premeditação. Um ou dois meses antes de ele me balear, pediu para eu assinar um seguro de vida para ele. Eu não aceitei.

TPM. Você achava que ele podia te matar?
MP. Na época, achava que poderia acontecer algo de grave comigo, mas me recusava a acreditar no assassinato.

TPM. Antes de ele te balear, houve alguma agressão física?
MP. Houve.

TPM. Que tipo?
MP. Jogar prato em mim. Mas eu me antecipava e não deixava ele me acertar. Não aconteceram outras coisas porque eu evitava. Não deixava chegar perto.

“Não sabia o que fazer. Estava realmente perdida”

TPM. Por que ele te jogou um prato?
MP. Uma vez ele não gostou da comida, era uma feijoada, achou não-sei-quê, jogou o prato, que caiu no chão e cortou a perna da minha filha.

TPM. A essa altura, você já devia estar perdida…
MP. Não sabia o que fazer. Estava realmente perdida.

TPM. Qual era o direito que a mulher tinha?
MP. Solução não existia. Experimentei até encontro de casais. Armei toda a situação para uma amiga minha nos convidar. Socialmente ele era uma pessoa maravilhosa, nunca demonstrava para o público quem ele era na realidade. Tem gente que acha que violência doméstica está relacionada a classes sociais menos favorecidas.

TPM. O seu caso e o de suas amigas comprovam o contrário, correto?
MP. Sim. As mulheres de uma classe social mais elevada estão conseguindo ser atendidas pela lei Maria da Penha, só que tudo de forma discreta. Não aparece na mídia. Elas só aparecem na estatística. Essas mulheres têm advogados que não permitem que os casos saiam nas manchetes. A lei Maria da Penha auxilia classes menos favorecidas também. O problema é que as pessoas de menor poder aquisitivo ficam na dependência de o processo andar pela via gratuita e daí demora mais. É terrível isso, mas quem tem amizades, conhece alguém no juizado, faz a coisa andar mais rápido.

TPM. É possível traçar o perfil do agressor doméstico?
MP. Muitas vezes não é um bandido ou uma pessoa má. Ele tem aquele comportamento agressivo [o agressor mais leve] porque viveu numa família onde isso era normal. Ele acha que agredir é normal. É cultural. Por isso que, com a lei, há um sistema de atendimento ao agressor. Nós temos que desconstruir essa cultura com diversos mecanismos: o da educação; a pena, que tem que ser exemplar; e a questão do atendimento ao agressor.

“Se ele gostar mesmo dela, vai aprender a respeitá-la”

TPM. Mas tudo isso é disparado pela denúncia?
MP. Exatamente.Se a mulher não denuncia, como o homem que não a trata bem vai ser penalizado?

TPM. O homem que agrediu uma mulher pela primeira vez tem salvação?
MP. Tem. Mas a mulher precisa procurar a delegacia e conscientizar o cara de que ela tem como recorrer, caso a agressão se repita. Se ele gostar mesmo dela, vai aprender a respeitá-la. Tenho referências de comunidades em que, quando prenderam o primeiro homem em flagrante, os outros homens pararam de bater nas mulheres.

TPM. O que acontece mais: a mulher procurar a delegacia na primeira agressão ou apanhar muito até buscar ajuda?
MP. O segundo caso. A violência doméstica obedece a um ciclo com as seguintes etapas: violência, pedido de perdão do agressor, nova lua-de-mel e nova agressão, que aumenta a cada ciclo. Conheço muitas mulheres aceitas em casas de abrigo que não podem nem voltar pra casa por que correm o risco de serem mortas.

TPM. Por que a mulher muitas vezes nem denuncia?
MP. Porque o marido é um bom pai. Ela pensa mais nos filhos. Muitas mulheres de classe mais alta deixam de se separar porque o marido diz: “Posso me separar, mas vou te dar somente o que você tem de direito”. Como é que essa mulher vai poder sustentar o filho no mesmo padrão? Então, ela se sujeita.

TPM. Como foi a noite em que o Marco tentou te matar com um tiro de espingarda?
MP. Era um momento feliz porque ele havia conseguido um emprego de professor no Rio Grande do Norte, então passava semana sim semana não lá. No dia do crime, ele havia chegado de viagem. Fui buscá-lo no aeroporto, exigência dele para manter as aparências. À noite, fomos visitar uma amiga e fiz questão de levar as meninas. Ele fez um caminho por lugares ermos e o carro atolou. Hoje penso que, se estivesse sozinha, teria morrido ali. Voltamos pra casa umas 11 da noite. Levei as crianças pra dormir. Tomei banho, troquei de roupa e ele ficou na sala, vendo TV. Dormi. Acordei com um tiro nas costas. 

A primeira idéia que me veio à cabeça foi que o Marco havia me matado. Aí , escutei o ferro e a tábua de engomar caírem na área de serviço. Pensei: “Puxa, fiz um mal juízo dele…”. Não me mexia. Tinha levado um tiro quase letal. Aí, não sei se desmaiei, acordei e vi um monte de gente perto de mim. Me disseram que o Marco tinha sido encontrado com o pijama rasgado e uma corda no pescoço, que ele tinha lutado com uns assaltantes e que tentaram enforcá-lo. A história real: ele armou todo o circo.
 
“Você está sabendo de um boato em Fortaleza
que foi o Marco que atirou em ti?”

TPM. Em que pensava na cama, quando sentiu que havia sido atingida?
MP. Naquele momento, só fiz rezar. Que minhas filhas não ficassem órfãs de mãe. Seja de que jeito for, mas eu não quero morrer. Pedi a Deus isso e ele me atendeu.

TPM. Você é religiosa?
MP. Não sou de botar joelho no chão e de ir todo dia à missa, mas gosto de assistir a uma missa quando o sermão é bem conduzido. Acho que tem coisas inexplicáveis regidas por uma força superior.

TPM. Quando você começou a entender o que realmente aconteceu naquela noite de maio de 83?
MP. Quando uma amiga me visitou em Brasília. Ela disse: “Você está sabendo de um boato em Fortaleza que foi o Marco que atirou em ti?”. Eu não acreditei…

TPM. Os boatos começaram a apontar para ele porque a história estava mal contada?
MP. Os vizinhos contribuíram muito para a verdade aparecer. Eles escutaram o tiro e correram pra rua, então não houve chance nem tempo de fugirem da minha casa sem alguém ver. O Marco disse ter sido ferido com um tiro, só que não foi. Ele mesmo se feriu, talvez com uma faca, no ombro, e a minha mãe quando fez o curativo achou estranho: “Marco, só esse machucado aqui e você diz que foi uma bala?”.

TPM. Durante o tratamento você foi levada para Brasília?
MP. Fiquei dois meses hospitalizada aqui em Fortaleza e dois meses lá em Brasília.

“Senti uma corrente [elétrica] passar…

TPM. Ele te visitava no hospital?
MP. Sim, pra fazer raiva. Tinha medo porque, na primeira vez que ele chegou, foi muito arrogante quando não tinha ninguém no quarto. Minhas irmãs ficavam dentro do banheiro por segurança. Chegava brigando, reclamando das crianças. Por duas vezes, quando chegou ao quarto do hospital e eu estava cochilando, me acordou dando uns chutes na cama, dizendo: “Não quer falar comigo, não?”.

TPM. O período de quatro meses longe das filhas foi o pior momento da sua vida, não?
MP. Foi muito doloroso. Foi o pior momento. Chorava muito lá em Brasília. Às vezes, à noite, ouvia uma criança chorar na enfermaria e pensava nelas na hora.

TPM. Receber a notícia de que não andaria nunca mais também deve ter sido muito pesado. Do que sente mais saudades da época em que andava?
MP. Tenho saudades do forró. Adorava dançar. Também tenho saudades das ondas “lambendo” as pernas quando elas recuavam para o mar. Lembro da areia saindo de baixo dos pés.

TPM. É verdade que, duas semanas após voltar para casa, ele tentou te eletrocutar no chuveiro?
MP. Alguns dias depois da minha chegada de Brasília, ele me perguntou se eu não queria tomar banho. Me conduziu, empurrando uma cadeira de banho, ao banheiro da suíte, abriu o chuveiro elétrico, eu apoiei na parede e fiz assim [estica o braço] só pra ver a temperatura da água. Senti uma corrente [elétrica] passar… Aí me empurrei e disse que estava dando choque. Ele disse: “Que besteira!”. A minha cadeira era toda de ferro… Fui pra trás e disse que não ia tomar banho, dei um grito e as meninas [babá e empregada], como sempre estavam por perto, apareceram logo e me ajudaram. Pouco tempo depois ele resolveu ir embora. Meu Deus, quando ele foi viajar ainda veio me dar um beijo! Na ausência dele, consegui dormir. Até então só dormia de dia, à noite tinha medo. Fui ao escritório, abri umas gavetas e descobri que ele tinha uma amante no Rio Grande do Norte.

TPM. O dia em que ele viajou de vez foi o dia mais feliz da sua vida?
MP. Com certeza. Você sabe o que é dormir às oito horas da noite e acordar às dez horas da manhã? Recuperei as forças, cabeça serena. Esse dia, venci uma etapa. A partir daí, procurei a polícia para dar depoimento.

“Quando existe impunidade,

o agressor acaba sendo estimulado”

TPM. Aí começou a luta de mais de 19 anos para você provar que foi vítima de uma tentativa de homicídio. Pensou que ia demorar todo esse tempo?
MP. Aí que fui conhecer o que é a Justiça. Aí que vi que a vítima e nada são a mesma coisa.

TPM. Demorou quanto para você desistir da Justiça brasileira e procurar entidades internacionais?
MP. Se eu tivesse conhecimento antes, já tinha chamado há mais tempo. Mas nem poderia, pois precisava esgotar os recursos internos do país.

TPM. Mas quase que o crime prescreveu?
MP. Isso me deixava desesperada. 

No momento em que o Brasil foi condenado 
pela Organização dos Estados Americanos, relaxei. 
Na condenação, dizia que as leis do Brasil teriam que mudar, 
pois negligenciavam os casos de violência doméstica. 
Quando existe impunidade, o agressor acaba sendo estimulado.

TPM. Como o seu caso foi reconhecido internacionalmente?
MP. O principal foi a publicação do meu livro de 150 páginas [Sobrevivi... Posso Contar], em 94. Repercussão muito grande. Foram mil exemplares, todos vendidos. Trabalho na publicação de uma segunda edição com atualizações de tudo o que aconteceu depois de 1994.

TPM. Você ficou satisfeita com o período que ele ficou preso (Marco foi condenado a dez anos, mas cumpriu na prisão menos de um terço da pena)?
MP. A minha alegria foi o Brasil ter sido condenado internacionalmente. Acho que o tempo que ele ficou preso não interfere em nada. O importante é o que se conquistou, diversas mulheres já foram salvas pela lei.

“Muita coisa deixei de contar,

e tem coisas que esqueci mesmo”

TPM. A decepção que você teve com o sistema judiciário brasileiro se compara com a decepção amorosa?
MP. Não, é bem maior a decepção que tive com a Justiça. A raiva é bem maior. Uma Justiça que você precisa de pistolão não é Justiça. É muito triste.

TPM. Qual sua grande batalha hoje?
MP. Ampliar o número de delegacias da mulher e que todos os lugares tenham esse atendimento especializado com pessoas capacitadas.

TPM. E você tem algum lazer?
MP. Domingo de manhã gosto de assistir a programas de debate na TV. Ler jornal, só de domingo e segunda. Estou sem tempo para nada. Tenho uma pilha de livros pra ler, estou doida pra terminar de escrever meu livro, dou palestras, recebo homenagens.

TPM. Tem pesadelos com as coisas que te aconteceram?
MP. Não. Exorcizei tudo com o livro que escrevi. Foi a minha carta de alforria. Muita coisa deixei de contar, e tem coisas que esqueci mesmo. Faço questão de não lembrar. Às vezes, toca alguma música que me faz lembrar daquele tempo, quando as crianças eram pequenas…

TPM. Qual música?
MP. “Ursinho Pimpão”. Não posso ouvir essa música.

Mitos comuns sobre feminismo e como respondê-los



bulevoador



Autor: Eli Vieira*
A seguir, alguns mitos sobre feminismo. Se está sem tempo, leia apenas a descrição dos mitos em itálico, pulando exemplos e respostas.



- Que é um “machismo” às avessas, ou seja, preconceito contra homens (misandria): 

falso. Homens são beneficiados com igualdade entre gêneros capitaneada pelo feminismo pois ela implica, entre outras coisas, que eles não precisam atender a papeis idiotas de gênero, como a suposta obrigatoriedade de ser hétero, violento e grosseiro.

Exemplo: “Você é gay? Nunca achei, parece até homem”.
Resposta: A masculinidade não depende da orientação sexual, pois é uma identidade de gênero. O único critério confiável e respeitoso para julgar se alguém é homem é a autoidentificação (que não é apenas uma declaração qualquer, mas uma consistente e fidedigna expressão de como a pessoa se sente e se vê). Todos os outros critérios comumente usados falham: nem todo homem tem barba, nem todo homem tem pênis (existem homens trans, identificados como mulheres ao nascer – e que nunca se sentiram mulheres; e homens que perdem o pênis em acidentes), nem todo homem tem voz grave etc. 

É bom lembrar que usar “masculinidade” de forma honorífica, como um elogio ao caráter, é uma forma de sexismo. Não é uma virtude nem um vício ser homem. É apenas um fato da natureza e da identidade de aproximadamente metade da humanidade. 

É normal que pessoas eroticamente atraídas por características ‘masculinas’ usem ‘masculinidade’ como elogio estético, mas só pode ser um fruto de uma valorização extrema ao masculino que alguém diga “este é homem!” ou pergunte “você não é homem, não?” quando quer se referir a virtudes como a coragem, que certamente não é atributo exclusivamente masculino, mas característica de parte da humanidade: as pessoas corajosas, que podem ser homens ou não. 

Feministas criticam associações injustas de gêneros a virtudes e vícios, e tratamento desigual, pela óbvia injustiça que traz. Imagine se você vivesse num país em que ser chamado de “homenzinho” significa ser chamado de covarde. Soa justo?



- Que não atende aos interesses masculinos, sendo necessário o “masculinismo” para isso: “masculinismo” não é um nome para uma comunidade de pensadores e ativistas que realmente estejam em sua maioria preocupados com igualdade, como é o caso do feminismo. A ONG SPLC mostrou que os supostos “ativistas dos direitos dos homens” ou “masculinismo” nada mais são que grupos de ódio.

Exemplo: “É culpa das feministas que os juízes não respeitam os direitos do pai e sempre dão a guarda dos filhos para as mães após divórcios.”

Resposta: Como eu disse anteriormente, feministas não querem que uma pessoa ganhe vícios ou virtudes automaticamente apenas por identificar-se com determinado gênero. Então, se vivemos numa cultura em que existe uma crença disseminada de que é sempre a mulher quem se dá bem com crianças, e de que mulher que não tem filhos é incompleta (como se não ter filhos não fosse uma opção disponível do cardápio de escolhas de vida de uma mulher), isso é um sinal de machismo ou sexismo, coisas que são alvo da crítica e das ações feministas. Se os juízes estão realmente tendo o preconceito de que a mulher é sempre a mais apta para ter a guarda dos filhos, o que é mais provável: que estejam lendo livros feministas que apregoam igualdade em direitos, ou que estejam reproduzindo preconceitos da sociedade em que foram criados, especialmente preconceitos sobre o papel da mulher?



- Que criou leis que tratam desigualmente homens e mulheres, como a Lei Maria da Penha: 

falso. Homens podem ser atendidos pela Maria da Penha e a lei foi aplicada até em casos de violência doméstica em casais gays masculinos.

Exemplo: “As leis já proíbem agressões! Ficar fazendo leis para partes da população é criar privilégio!”

Resposta: Foi preciso que filósofos como Dworkin e Rawls queimassem suas pestanas em esforços hercúleos de identificar que consequências se seguem de cada ação dos legisladores para que os juristas modernos entendessem e percebessem que tratar todos da mesma forma, ignorando desvios na vitimização de cada grupo humano, acaba mantendo desigualdades injustas. 

O consenso hoje costuma ser que aqueles que sofrem maior dano acumulado de discriminação devem ser os alvos do maior esforço de elevação à igualdade: desiguais por injustiça devem ser tratados desigualmente por justiça. 

A literatura acadêmica acumulou inúmeros casos de desdém pelas mulheres vítimas de agressão doméstica e violência sexual em delegacias convencionais até que se percebeu a necessidade das delegacias da mulher (lembra dos juízes poderem reproduzir preconceios da sociedade ao redor? Policiais e delegados também podem cair nessa). 

É verdade que homens são mais propensos a se vitimizarem na violência urbana, mas não dá para ignorar que 

“70% dos homicídios de mulheres no Brasil são cometidos por ex-maridos e ex-namorados, na maioria das vezes, por estes não aceitarem o desejo das mulheres de ruptura do relacionamento amoroso (Saffioti: 1994)”.  

Ignorar isso na hora de tratar agressão doméstica seria como fazer campanhas de conscientização sobre o câncer de mama ignorando completamente que a maioria das vítimas são mulheres. 

Para cada problema específico do mundo natural, a ciência gera uma teoria específica. Com problemas sociais não deve ser diferente: para cada problema específico, deve haver vontade política e legislação específicas. As generalidades, que são bonitas e aceitáveis, são salvaguardadas pela Constituição. Os detalhes de como botá-las em prática são desenvolvidos em códigos, estatutos, leis orgânicas, e leis específicas como a Maria da Penha. Você conhece a história da Maria da Penha? Vale a pena conhecer.


 

Conclusões

O movimento de direitos humanos que busca a igualdade dos gêneros ganhou o nome de “feminismo” (na verdade há vários “feminismos”, mas isso os une) porque foram e ainda são as mulheres o gênero mais oprimido na maior parte do mundo. Poderia ser chamado de “pudim de leite”, não importa: não devem ser tiradas conclusões apressadas da etimologia da palavra (do fato de feminismo ter a mesma raiz da palavra “feminino”). O erro de raciocínio de tirar conclusões falsas sobre um conceito a partir da etimologia do termo que o rotula é conhecido como “falácia etimológica“.

Existem sociedades em que o gênero masculino é menos favorecido que o feminino e os homens precisam lutar por seus direitos para atingir a igualdade? Sim. São muito raras, e uma delas é Meghalaya, no leste da Índia. O Brasil, obviamente, não é uma dessas sociedades. Até hoje mulheres ganham menos para desempenhar as mesmas funções de homens e nosso parlamento tem apenas 8% de parlamentares mulheres.


Por isso, se você é a favor da igualdade entre os gêneros, você é feminista, seja você homem (cis ou trans) ou mulher (cis ou trans).
Aprenda um pouco mais:
 
- História do voto feminino no Brasil
- Filme com Hilary Swank sobre a chamada “primeira onda feminista” que conquistou o voto feminino nos EUA
Infográfico da IstoÉ mostrando a extrema juventude das conquistas das mulheres no Brasil. 


 Somente há 10 anos os homens perderam o privilégio de anular casamentos por falta de virgindade da esposa! 
A última anulação de casamento por este motivo machista da lei antiga aconteceu em 1998.



P. S.: Se depois de ler tudo isso alguns ainda insistem que feministas (que erroneamente caracterizam sempre como “as feministas”, como se não houvesse feministas que não são mulheres) têm na verdade interesses ocultos em promover a supremacia feminina sobre todos os outros gêneros, é sempre bom lembrar esta máxima do ceticismo: teóricos da conspiração são os responsáveis por evidenciar o que alegam. E evidências anedóticas sobre casos isolados, como bem lembrava Carl Sagan, não são evidências de fato, mas geralmente uma seleção enviesada de quem já tem as conclusões antes de procurar por fatos.

P. P. S.: Existem, é claro, discordâncias entre feministas. Muitos e muitas, por exemplo, acham que pode ser sexismo usar a forma gramaticalmente canônica da língua portuguesa de generalizar para o “masculino” na hora de falar no plural (os estudantes, os cientistas etc.). Não é o que eu acredito: amigos linguistas me dizem que, apesar de o Japão por exemplo ter sido e talvez ainda ser uma cultura extremamente sexista, a língua por lá soa bem ”igualitária”, não tendo essa binariedade de gêneros gramaticais. Na verdade línguas como o russo têm mais de dois gêneros gramaticais, então é apenas uma convenção e um acidente da história da língua portuguesa que nós falemos e escrevamos assim, e que os linguistas ainda chamem essas categorias de “gêneros”. 

Acho importante uma certa vigilância e alguns hábitos, como por exemplo suprimir o artigo “os” (como fiz neste post algumas vezes) ou citar ambas as formas (como também fiz aqui). Há feministas que utilizam “x” e “@” no lugar das vogais indicativas de gênero gramatical em sufixos. Tenho quatro objeções a isso, uma subjetiva e três objetivas: é esteticamente pouco atraente (subjetiva); atrapalha e distrai na hora de ler (objetiva); no fim não leva a grandes mudanças porque a língua falada é dominante (sempre será porque é falando que aprendemos) e esses caracteres nesses lugares são impronunciáveis (objetiva); traz desconfiança aos leitores pois faz textos feministas parecerem coisa de uma comunidade hermética com maneirismos de escrita, como se fosse uma tribo urbana, em vez de um grupo de ativistas que recebe a todas e todos (objetiva).
P. P. P. S. (o último!): Gêneros são fenômenos naturais da cultura e da biologia, parte indissociável da natureza humana, e portanto são objeto de pesquisa e há questões da pesquisa que estão em aberto. Há escolas de pensamento que defendem que não é um fenômeno discreto, ou seja, que há um espectro contínuo de identidades possíveis entre a masculinidade e a feminilidade. Há outras que negam que gênero se restrinja ao binário de masculino e feminino, e citam como evidência culturas em que há mais de dois gêneros (como em Samoa, em que além de homem e mulher há “fa’afafine”). Finalmente, há acadêmicos que alegam que gênero não é uma questão de identidade, mas de “performatividade”: não dizem respeito ao que você é, mas ao que você faz. Simpatizo com algumas dessas escolas, especialmente como geneticista, pois espero uma variação genética substancial entre humanos que serve como arcabouço para mais variação originada da influência do ambiente, especialmente a cultura. Recursos genéticos e recursos culturais são igualmente importantes na manifestação de nosso infinito (às vezes literalmente infinito) repertório comportamental.

* Eli Vieira foi o primeiro presidente da LiHS, é biólogo, mestre em genética e biologia molecular, e estudante de doutorado na University of Cambridge.
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