sábado, 27 de abril de 2013

Alunas vítimas de violência criticam omissão da USP



Estudantes criticam ausência de política institucional para punição de casos de violência contra mulher; especialista cobra mapeamento da violência
Violência física e psicológica tem feito parte da vida estudantil de muitas alunas do Campus Butantã da Universidade de São Paulo. Relatos de assédios, estupros, agressões físicas e verbais contra a mulher nos espaços da universidade são comuns.
Espaço Verde
No último mês de março, Flávia*, 23, foi agredida e acuada ao entrar no Centro Acadêmico das Ciências Sociais, o Espaço Verde. Segundo a vítima, o agressor sofre de transtornos psiquiátricos e e ameaçou esfaqueá-la.¹ Ela conta que ele se dirigiu a ela proferindo ofensas e frases como “você não pode fazer isso comigo” e em seguida começou a se despir. Assustada, a aluna diz que pediu ajuda a outro estudante que estava próximo ao local e que o agressor fugiu quando ela solicitou ajuda aos guardas do prédio.
Flávia relata que não sabia que procedimento adotar. “Pedi ajuda aos guardas do prédio e à Guarda Universitária, que informaram não ter poderes para tomar alguma atitude além de espantar o agressor”, conta. Confusa, a aluna diz que diante das novas ameaças feitas pelo agressor não sabia como proceder. “Eu era a vítima e tive que correr atrás de tudo”.
Por que você está gritando?
“Eu não fui a primeira, nem a última garota a ser estuprada na USP. A reitoria não pode continuar fingindo que não há estupros na USP”, desabafa Carolina*, 21, vítima de violência sexual no final de 2012², na Rua do Matão. “Só contei para amigas próximas. Estou abrindo meu caso para que nenhuma outra garota tenha que passar por isso”. Da agressão, ela diz que se recorda apenas em flashes. “Lembro-me dele dizer ‘por que você está gritando se eu estou te fazendo um favor?”.
Carolina prestou queixa à polícia, fez Boletim de Ocorrência e exame de Corpo de delito. Não pode efetuar o reconhecimento, pois não seria capaz de distingui-lo. “As mulheres enfrentam um grande desestimulo para impetrar um processo. A polícia desestimula”. A aluna acredita que há necessidade da punição institucional em todos os casos de estupro nessa universidade. “Vamos ter que esperar morrer alguém para algo ser feito em relação à violência contra a mulher”, protesta.
Ilustração: Marcelo Marchetti
‘Menos eu’
Em 2009, Irina Cezar, 24 – na época, aluna da graduação de Ciências Sociais, atualmente cursa Licenciatura na mesma área – foi vítima de assédio moral dentro do apartamento que dividia com o agressor e outro colega, no Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo (CRUSP).
Vinda do interior, Irina precisou recorrer à moradia estudantil devido a problemas financeiros. “Quando vim pra São Paulo, vim pra ficar. Não tive condições de pagar uma república, então bati de porta em porta no CRUSP até me aceitarem”. Ela não sabia que o jovem receptivo que a acolhera era o mesmo sob o qual pesavam três acusações de estupro. “Todo mundo sabia, menos eu. Achei que eu tivesse tido sorte por encontrar uma vaga”, relembra. Certa noite, Irina acordou com o barulho de sua mala caindo no chão e viu que o agressor estava dentro de seu quarto. “Tudo aquilo era muito estranho, eu pensei que seria estuprada. Mas quando ele me tocou eu comecei a chorar, ele desistiu e saiu”.
A aluna decidiu processar o agressor. “Fui até o fim, não quis acordo. Quando ganhei o processo achei que poderia tirá-lo da USP, levei os documentos ao COSEAS, eles disseram que iam tomar providências, nada foi feito”.
Casos invisíveis
“As pessoas dentro da universidade reproduzem os valores da sociedade. Muitos casos de violência permanecem invisíveis” afirma Wânia Pasinato, socióloga e Coordenadora de Pesquisa do Núcleo de Estudos da Violência (NEV/USP) e especialista em Violência de Gênero. Segundo a pesquisadora, para que medidas efetivas possam ser tomadas em relação à violência contra mulher é necessário que a universidade registre os casos e desenvolva estudos sobre o assunto, o que inexiste. “Eu desconheço estudos sobre a violência de gênero em ambiente universitário, nem aqui na USP nem outra universidade brasileira, apenas em universidades estrangeiras. Essa é uma grande lacuna no assunto. A USP precisa fazer uma pesquisa de vitimização com as alunas, falta uma política institucional para esses casos”, comenta.
Luiz de Castro Junior, o Superintendente de Prevenção e Proteção Universitária da USP, alega que está sendo providenciado um material de prevenção para “delitos e ações antissociais”. O superintendente e os demais departamentos da USP procurados pelo Jornal negam ter registros formais dos casos de violência contra a mulher. Irina contesta essa afirmação dizendo que seu caso foi computado e que se recorda de outros casos que também o foram.
“A USP não possui nenhuma articulação sobre esse assunto, não temos política institucional”, afirma uma funcionária da USP que preferiu não se identificar.
Enquanto a universidade não prevê sanções, segundo Irina, agressores seguem convivendo no campus. “O meu agressor é um morador antigo do CRUSP, eu o denunciei e ele ainda mora aqui nos apartamentos da pós-graduação”.
Embora não haja punições da própria instituição, Castro esclarece que “internamente a USP conta com a Assistência Social que pode atender esses casos e repassar à Superintendência de Segurança para medidas de acionamento policial”. No entanto, Carolina se diz insatisfeita. “A polícia já está aqui dentro e eu ainda não me sinto segura”. Por outro lado, Irina acredita que se a polícia fosse mais presente no campus, talvez seu agressor não cometesse crimes livremente. “Sem autoridade ele estava livre para fazer o que quisesse, sabia que a USP não faria nada”.
Uma questão social
Irina, Flávia e Carolina concordam que há omissão por parte da USP nos casos de agressão às alunas, tanto no registro interno, quanto em iniciativas de segurança. Para Carolina, “a segurança da USP não contempla a demanda das reivindicações da mulher. Precisamos de podas de árvores, mais iluminação, presença de efetivo feminino”. E Irina denuncia: “Conheço pelo menos um caso de violência contra mulher por bloco do CRUSP, todo mundo sabe”.
Wânia defende que o atendimento emergencial de violência na USP deve ser aprimorado continuamente, seja ele feito por meio da polícia ou de uma guarda e algumas medidas de segurança devem ser aplicadas, tais como melhor iluminação, reforço de segurança em dias de festas, orientação sobre lugares a serem evitados ou comportamentos estranhos e identificação das zonas mais perigosas do campus. “A questão da violência contra a mulher não é uma questão de policia, é uma questão social e a universidade tem que ser exemplo para a sociedade”, e acrescenta que “a USP precisa fazer um diagnóstico da violência nesse espaço, um trabalho interinstitucional. Que se possa ter um ranking, ainda que não seja um quadro que coloque a USP entre as melhores universidades. Mas imagine que ótimo seria se as pessoas pudessem ver um exemplo de combate à violência na universidade?”.

*Nomes fictícios

¹Errata: Na matéria impressa do jornal consta que a vítima disse que o agressor portava uma faca, mas, segundo ela, não havia visivelmente nenhuma faca. O correto é que o agressor apenas ameaçou verbalmente esfaqueá-la.

²Errata: Na versão impressa consta o ano de 2011, no entanto, a agressão ocorreu em 2012.

Texto original em: http://www.jornaldocampus.usp.br/index.php/2013/04/alunas-vitimas-de-violencia-criticam-omissao-da-usp/

Cultura do estupro: sociedade incentiva violência contra a mulher



PP

Postado em: 26 abr 2013 às 10:36
Ilustração de Luciano Tasso
Sobre a cultura do estupro: expressão indica que a sociedade não só tolera como incentiva a violência contra mulheres por meio da violência sexual, mas vai além. É um processo para constranger pessoas a se adequarem a papéis de gênero Por Cynthia Semíramis, Revista Forum


Uma expressão que vem se tornando bastante frequente quando se fala em violência contra mulheres é que vivemos em uma “cultura do estupro”, na qual a sociedade incentiva a violência sexual contra mulheres. Porém, essa visão é bastante restrita para os dias atuais, embora fosse perfeitamente compreensível na época de sua criação, que ocorreu nos grupos de sensibilização das décadas de 1960 e 1970.

Esses grupos não tinham uma pauta fixa, mas variável, improvisada à medida que as demandas surgiam. Como se tratava de uma época de mudança de mentalidade, eram bastante comuns discussões sobre questões sociais. O intercâmbio de informações entre os grupos gerou mobilização suficiente para pressionar por direitos civis, incluindo mudanças legislativas e políticas públicas para mulheres.

Nesse período, os grupos eram exclusivamente masculinos ou femininos e problematizavam principalmente as relações heterossexuais. As mulheres discutiam como lidar com uma sociedade que reprimia sua sexualidade e negava direitos. Os homens discutiam como os estereótipos acerca da masculinidade (como a pressão para ser sempre autoritário, não chorar, e tratar mulheres como subordinadas) limitavam suas vidas e dificultavam o relacionamento com as mulheres.

No início da década de 1970, nos Estados Unidos, o estupro era considerado uma doença, uma anomalia, uma “necessidade” masculina, uma mentira ou culpa da vítima. Esses conceitos foram questionados à medida que os comentários das pessoas nos grupos de sensibilização apresentavam visões completamente diferentes sobre o tema.

 

Estupro como relação de poder

O grupo New York Radical Feminists destacou-se nessa área, produzindo palestras e conteúdo que inspiraram cineastas e escritoras. Dentre os trabalhos produzidos merecem destaque o documentário Rape Culture (Cultura do estupro), de Margaret Lazarus e Renner Wunderlich, e o livro de Susan Brownmiller Against Our Will: Men, Women and Rape (Contra a nossa vontade: homens, mulheres e estupro), ambos de 1975.


O documentário foi importante porque apresentou diversos pontos de vista em relação ao estupro, dando voz às vítimas, estupradores e pessoas que trabalhavam em centros de atendimento às vítimas. Também fez uma análise da abordagem midiática em casos de estupro, concluindo que a cultura da época endossava a violência sexual contra mulheres.

O livro de Susan Brownmiller apresenta um histórico detalhado sobre o estupro. São expostas inclusive questões raciais (a origem da mentira de que homens negros seriam “naturalmente” estupradores) e observações sexistas em livros jurídicos (um autor sugeria desprezar denúncias de estupro porque as mulheres “têm tendência a mentir”).

Brownmiller concluiu que o estupro não é um crime relacionado a sexo ou desejo sexual. O estupro se refere a uma relação de poder: trata-se de um processo de intimidação pelo qual todos os homens mantêm todas as mulheres em um estado de medo permanente.

A violência doméstica se enquadra nesse raciocínio, pois mulheres são tratadas como propriedade masculina e essa relação se manifesta por meio do espancamento e do estupro marital. Estupros em casos de escravidão e de guerra (inclusive religiosa) também se encaixam nessa teoria, pois são uma forma de subjugar por meio da violência sexual. E o conceito de feminicídio (homicídio de mulheres que não obedecem aos cânones sociais) claramente deriva dessa observação de que a cultura legitima a violência contra mulheres.



Em todos esses exemplos fica nítida a relação de poder: as mulheres não têm vontade própria, sendo consideradas propriedade dos homens. E a respeitabilidade masculina só é obtida na medida em que a mulher pode ser coagida a seguir as regras sociais e obedecer ao pai ou marido. A coação é feita criticando as mulheres que não aceitam se submeterem a essas regras e culpando as vítimas de crimes sexuais. Com medo de serem hostilizadas e violentadas, acabam se submetendo à autoridade masculina para evitar mais violência.

 

Cultura do estupro para manter papéis de gênero

Atualmente, a compreensão é de que não se deve opor homens a mulheres, como fez Brownmiller, pois o problema está na estrutura social antiquada que determina papéis de gênero fixos: homens deveriam agir de determinada forma; mulheres, consideradas inferiores a eles, deveriam agir de forma diferente para evidenciar essa inferiorização e deveriam se subordinar aos homens. Às pessoas caberia simplesmente acatar e se enquadrar nos papéis predeterminados.

Nessa estrutura, a forma utilizada para constranger mulheres a se submeter aos homens está no controle do corpo e de sua sexualidade: deveriam ser virgens ou sexualmente recatadas, não deveriam usar determinadas roupas ou frequentar certos locais. E a punição para as que não aceitassem era a legitimação da violência por meio de hostilidade e, em casos extremos, estupro e morte. Ou seja, a cultura do estupro é o processo de constrangimento social que garante a manutenção dos papéis de gênero. Não é uma ação individual (como se todo homem odiasse mulheres), mas uma convenção social que mantém determinados papéis e estruturas sociais.

Esse constrangimento social não é direcionado somente às mulheres, mas a toda pessoa que não se enquadre no modelo. Os homens heterossexuais perceberam isso nos grupos de sensibilização dos anos 1960, quando questionavam os estereótipos acerca da masculinidade e eram hostilizados por não serem “masculinos o suficiente” para a cultura da época. Em tempos recentes, homossexuais também perceberam que desde a infância foram moldados para agir de acordo com papéis de gênero que desprezam sua liberdade, forçando-os a uma heterossexualidade compulsória. Quando não se adequam são ridicularizados, estuprados e agredidos até a morte. Mulheres lésbicas enfrentam os mesmos problemas, agravados pela ameaça de estupro corretivo para que a violência sexual as “transforme em heterossexuais”. Ao contrário do que parecia na década de 1970, a cultura do estupro não é uma questão apenas de violência contra mulheres heterossexuais.

 

Generalizações inadequadas

A cultura do estupro é bastante criticada por generalizar, transformando todos os homens em estupradores e todas as mulheres em vítimas passivas. Esse tipo de generalização é inadequado e não beneficia a ninguém. Ele perpetua a história da Chapeuzinho Vermelho que deve se precaver contra todos os homens, como se cada um deles fosse o Lobo Mau à espreita para seduzi-la e destruir sua reputação, forçando-a ao isolamento social.

Outro problema de tratar a mulher sempre como vítima é hostilizá-la quando ela recusa este papel, desprezando sua autonomia para decidir o melhor jeito de lidar com a violência que sofreu.

Há alguns anos o caso de Natascha Kampsuch gerou comoção por duas vezes. Primeiro, quando se descobriu que ela foi retirada à força de sua família, estuprada e mantida em cárcere privado dos 10 aos 19 anos. Quando conseguiu fugir, o agressor se suicidou. Em seguida, foi bastante criticada ao publicar suas memórias e expor estratégias de resistência, mostrar o agressor como uma pessoa comum (e não um monstro) e contar como conseguiu superar os traumas.

Guardadas as devidas proporções, no Brasil há o caso de Geisy Arruda, hostilizada pelos colegas de faculdade por causa de um vestido curto. Ela se recusou a continuar no papel de vítima e foi criticada por não ter se escondido, procurando lucro e projeção social como compensação pela hostilidade que sofreu.

A generalização cria uma guerra dos sexos inútil, que gera desconfiança e perpetua estereótipos: infantiliza as mulheres e despreza suas possibilidades de resistência ou de mudança de papéis, além de ignorar os inúmeros casos em que os homens são vítimas de violência sexual ou são injustamente acusados de terem-na cometido.

 

Combatendo a cultura do estupro

A discussão sobre a cultura do estupro já tem cerca de quarenta anos. Não há como ignorar que o mundo mudou bastante nesse período. As mulheres cada vez mais obtêm a igualdade de direitos e questões relacionadas à liberdade sexual são cada vez mais garantidas pelo Estado.

No Brasil, os termos sexistas da legislação criminal foram abolidos em 2005. Em 2009, uma nova lei retirou o crime de estupro da seção de crime contra os costumes, para enquadrá-lo nos crimes contra a liberdade sexual, reconhecendo o direito da vítima de direcionar sua sexualidade de acordo com sua vontade – e não segundo a prescrição social.

O crime de estupro também foi alterado 
de forma a reconhecer que se trata de uma relação de poder, 
inclusive considerando que tanto mulheres quanto homens 
podem ser vítimas de estupro.

(mas o estuprador é sempre um homem - RC)
 
As modificações na legislação demonstram que, ao menos em relação ao Estado, a cultura do estupro vem sendo sistematicamente eliminada. Embora vários dos avanços legislativos dos últimos anos derivem de condenações do Brasil nas cortes internacionais de direitos humanos, o que importa é a pressão exercida por essas condenações e pelos movimentos sociais para que o Estado, com todo o seu aparato e poder de coerção, atue para que essas práticas sejam modificadas. A estrutura social se modifica para encampar a igualdade entre homens e mulheres e garantir a liberdade sexual de todas as pessoas.

Porém, as práticas sociais mudam lentamente. Publicidade, jornalismo, novelas e outros produtos midiáticos ainda creem estar no século XIX e agem contra a lei divulgando conteúdo que legitima racismo e violência contra mulheres e homossexuais. É necessário combater isso por meios legais e também com manifestações mais incisivas de movimentos sociais. Mas é importante lembrar que ações contra a cultura do estupro devem compreender as mudanças dos últimos anos e reconhecer que se trata de uma disputa em torno de papéis de gênero.

Grupos exclusivamente femininos ou masculinos podem existir para questões específicas, mas é melhor que coexistam com grupos mistos. O diálogo se amplia, as polarizações são matizadas e ao invés de tratarem o homem ou a mulher como inimigos, como muitas pessoas vêm fazendo, é possível perceber que todas as pessoas têm uma causa em comum: lutam para que os papéis de gênero deixem de ser opressores, e que a liberdade e a autonomia de todas as pessoas sejam efetivamente respeitadas.

Não é possível atualmente ter medo ou demonizar os homens, sejam eles heterossexuais ou não: eles são aliados das mulheres na luta contra a cultura do estupro porque também fazem parte e sofrem com a estrutura social que os engessa em papéis de gênero.

quinta-feira, 25 de abril de 2013

“Se mamãe ensinou assim (com seus preconceitos), quem sou eu para negar?”

 
pragmatismo politico
 
Postado em: 24 abr 2013 às 20:07

A família, muitas vezes, é uma das instituições responsáveis por passar preconceitos adiante. Por trás do que aparentemente são sábias palavras de pai e mãe escondem-se grandes bizarrices

Leonardo Sakamoto, em seu blog

Entrei em uma loja de armarinhos e pedi determinado rolo de linha e agulha para poder pregar alguns botões fujões e arrumar a maldita bainha de uma calça que insistia em se soltar, num desespero de causa para tocar o chão. Um grupo de simpáticas senhoras de cabelos brancos, ouvindo meu pedido, veio me dar os parabéns. Achei engraçada a cena e expliquei que fazer isso era mais barato que apelar sempre para os serviços de um profissional – o que seria vergonhoso, ainda mais para um neto de costureira.

preconceito homem costurar
(Imagem – Ilustração)

Até que uma delas reclamou que a nora era uma “inútil” porque não sabia pregar um botão da camisa do filhinho dela. De forma bastante delicada, para não atrapalhar aquele momento-chá-da-tarde, perguntei se o pimpolho não poderia ele mesmo fazer isso. Rindo de forma doce, ela soltou um “claro que não!”. Afinal, ele era homem. Eu é que estava indo além das minhas tarefas.

Pessoas ficam amuadas comigo quando digo que a família é uma das instituições responsáveis por passar preconceitos adiante, reforçando uma programação machista do indivíduo, por exemplo. Mas por trás do que parecem serem sábias palavras de pai e mãe, das quais nos lembramos com carinho e se tornam leis supremas para o resto da vida, não raro escondem-se grandes bizarrices.

A maior parte das incumbências que se atribuem aos gêneros não é por conta
de características físicas que diferenciam homens e mulheres – elas são capazes de fazer tudo o que nós fazemos, nós é que não somos capazes de fazer tudo o que elas podem fazer. Da mesma forma, uma “tradição” não existe desde sempre, ela é construída ao longo tempo, feito camadas de cebola sobrepostas, e não raro embute em sua gênese uma relação dominador/dominado, fantasiada de costume, cujo real significado perde-se na repetição passiva sem reflexão.
 
Em suma, limpar a casa e cuidar dos filhos não é coisa de mulher. Muito menos fazer bainha de calça.

Daí alguns leitores dizem: “Ah, mas eu sou homem e passo a vassoura na casa, levo os filhos na escola e prego botões. Então, você está errado, japa”. Se você se orgulha de fazer sua obrigação, deve ver essas atividades como favores feitos a alguém – à sua companheira, talvez? O que é ridículo. Isso deveria ser tão corriqueiro – entre nós, homens – como respirar ou comer, atos que fazemos sem questionar ou nos sentir grandiosos por isso.

Mas se mamãe (que junto com papai, doutrinou-me direitinho em preconceitos e visões excludentes de mundo) ensinou assim, quem sou eu para negar?
Enfim, pobres noras.

sábado, 20 de abril de 2013

A violência contra a mulher “está associada a problemas intrínsecos do sistema neoliberal”. Entrevista com Alma Padilla



 unisinos

Chiapas é um território ocupado em uma extensão importante pelo Movimento Zapatista (MLNZ), por comunidades indígenas e camponesas. É um território político forte, mas ainda é um foco conflitivo, uma região que por suas riquezas naturais e sua localização interessa, especialmente, as transnacionais e o governo, que não economizam meios para a subordinação das comunidades donas da terra.

Alma Padilla (foto), coordenadora do Centro de Direitos da Mulher de Chiapas, trabalha conscientizando as mulheres sobre seus próprios direitos, sobre a relação que preservam com a história e com o contexto, tentando envolvê-las não apenas individual, mas coletiva e politicamente.
 
 Fonte: http://goo.gl/gz1pm  
   

Licenciada em Psicologia, pela Universidade de Guanajuato, México, atual doutoranda pela Universidade Complutense de Madri, Alma Padilla trabalha com mulheres que são vítimas de violência familiar, de um conflito armado alheio, a “guerra de baixa intensidade”, etc. Além de ser fundadora e colaboradora do Centro de Atenção e Prevenção da Violência Sexual e Maus-tratos, em Guanajuato, é uma grande defensora dos direitos humanos e, fundamentalmente, dos direitos da mulher.

Existe a ideia de que a terra não pertence às comunidades, mas elas que a pertencem. Alma Padilla destaca que os direitos humanos estão diretamente relacionados com a propriedade da terra. Assim como na modernidade, em que alguns pensadores sustentavam que a propriedade não é unicamente um bem que o homem possui e explora, mas é parte da vida, quase do corpo. Nesse sentido, a política da expropriação sistemática da terra, por parte do Estado, é considerada uma violação aos direitos humanos, uma ação direta contra a conservação da vida das populações indígenas.

Na zona rural se entrecruzam três sistemas legais: o tradicional das comunidades, as leis oficiais e as do zapatismo. As mulheres devem resolver suas problemáticas, sobretudo a violência de gênero, nesse contexto complexo.

A expropriação da terra, a monocultura promovida pelas transnacionais e a falta de políticas públicas em prol da saúde e educação estão fragilizando fortemente as comunidades indígenas e camponesas mexicanas. Alma Padilla insiste que o trabalho realizado com as mulheres busca fortalecer a ideia de que a violência sofrida por elas é parte de um problema estrutural. Assim, o centro é um espaço fundamental para abrigar, assessorar e inteirar as mulheres de Chiapas.

A entrevista é de Julia Goldenberg, publicada no jornal Página/12, 15-04-2013. A tradução é do Cepat.

Confira a entrevista.

O Centro de Direitos da Mulher de Chiapas nasceu como uma consequência da organização das mulheres ou reuniu uma reinvindicação dispersa?
A construção do Centro de Direitos da Mulher de Chiapas surge como uma forma de organização de vários grupos de mulheres já organizadas e algumas independentes. Em 2004, acontece uma assembleia de diferentes mulheres de Chiapas e de outros territórios. Aí, a partir da exigência das mulheres, surgem muitas denúncias de violações aos direitos das mulheres, sobretudo denúncias como formas de contra-insurgência que estavam ocorrendo a partir do Estado, na raiz do levantamento zapatista de 1994. Então, dão-se conta de que este espaço é construído pelas próprias mulheres e que abrigam numerosas reclamações, que de antemão não contavam com um espaço onde resolver ou construir alternativas. Disso surge a ideia de construir um Centro de Direitos Humanos que atenda e que possa trabalhar no processo de transformação da violação aos direitos das mulheres. Então, cria-se o Centro de Direitos da Mulher de Chiapas e, ao mesmo tempo, o Movimento Independente de Mulheres, que durante muito tempo gerou o processo de organização e de transformação do trabalho com as mulheres.

Como está organizado o Centro?
O Centro possui uma mistura de mulheres indígenas e de mulheres mestiças trabalhando, principalmente, defensoras dos direitos humanos, formando uma equipe de aproximadamente vinte pessoas. Além disso, existem diversas profissões e procedências. Temos um trabalho comunitário e cooperativo entre as diversas áreas. O Centro tem uma organização horizontal, guiada por uma consciência política que orienta o trabalho para a defesa dos direitos humanos, para a defesa de uma vida digna, para a transformação do lugar da mulher e a eliminação da violência. Este é um Centro construído teórico e politicamente em torno dessa questão.

Entendo que em Chiapas existem diferentes tipos de sistemas jurídicos. Quais são os que vocês contemplam no trabalho do Centro?
Em Chiapas existem três tipos de sistemas jurídicos: o sistema tradicional, que é o que está dentro das comunidades indígenas e camponesas; o sistema autônomo, que é o que foi construído por meio do movimento zapatista, que tem sua base no sistema tradicional, e o sistema oficial ou positivo, por meio das instituições oficiais do governo mexicano. Então, o Centro de Direitos utiliza e valoriza, no mesmo nível de força política e de capacidade de resolução, todos estes sistemas. Assim, o Centro de Direitos utiliza os três sistemas de forma igual. Empregando estes três sistemas, são resolvidos os problemas de violação dos direitos das mulheres.

As mulheres realizam suas denúncias dependendo de sua própria experiência em cada sistema. Por exemplo, as mulheres que viviam em comunidades indígenas e camponesas, em sua maioria, resolvem suas problemáticas nos sistemas tradicionais que são de suas comunidades. No caso das mulheres que pertenciam ao Movimento Zapatista, resolviam internamente. Neste processo há uma participação e uma exigência própria de justiça. Uma coisa que é muito importante, que acontece tanto no sistema tradicional, como no sistema autônomo, é que se confere muito valor para a voz das partes envolvidas.

É muito interessante a mudança de uma posição subjetiva da vitimização para a posição mais relacionada com a que trabalham.
No Centro trabalhamos com seus próprios processos, para que elas busquem a justiça em primeira pessoa, ou seja, que consigam resolver seus casos como próprios. Neste sentido, o Centro se torna um acompanhante e um incentivador em relação a esta justiça. Este é o processo que chamamos de “defesa participativa”. É importante destacar o lugar de agente que as mulheres possuem, para tirá-las do lugar de vitimização, porque se nós ficamos com isso, não acontecerá nenhuma transformação. Então, elas precisam reconhecer qual foi a sua contribuição, nesse processo, para poder transformá-lo.

Em que consiste a “defesa participativa”?
Esta ideia consiste em que as mulheres sejam agentes de suas próprias vidas. Contudo, além disso, consideramos que a solução jurídica não é a única solução, mas que precisa haver uma transformação no que chamamos de autodeterminação. Ou seja, que o processo jurídico de solução de seu caso se torne um processo impulsionador da transformação de sua vida, de seu arredor, de seus afetos, em relação ao modo como se vive a vida. Se uma mulher vive uma situação de violência de gênero porque, por exemplo, seu parceiro a está violentando, o processo não se resolve com o homem na prisão. Então, a ideia é fazer uma transformação mais profunda, para que se modifique não apenas essa relação, em particular, mas o modo como se relacionar, o modo de viver dessa mulher. Após uma longa análise, as próprias mulheres atingidas determinam qual é a via jurídica pela qual o caso deve ser resolvido.

A defesa participativa implicaria no reconhecimento dos direitos violados, o reconhecimento de que as mulheres possuem direitos e devem lutar por eles.
Contudo, quero destacar que o Centro não vem para resolver problemas: assessora e acompanha as mulheres em seus processos de resolução de problemas. Inclusive, realiza denúncias jurídicas e políticas, denuncia os sistemas que não reconhecem os direitos das mulheres ou que decidem reproduzir a violência por meio dos próprios sistemas.

A violência tem uma história 
e nós trabalhamos para que as mulheres sejam conscientes disso. 
Isto permite colocar a violência dentro do contexto e transformar o problema numa regra e não numa exceção. 
Acreditamos que esta violência está associada a problemas intrínsecos do sistema neoliberal, patriarcal, com uma base estrutural e histórica.

Qual é a relação do Centro com o Estado?
O Estado mexicano tem uma tendência neoliberal, portanto, todo o processo de construção de políticas públicas para a população depende da dinâmica do mercado neoliberal. Em 1994, quando é assinado o tratado de livre comércio (ALCA), emerge o Movimento Zapatista denunciando essa forma de política duríssima para a população. Por sua vez, certos métodos contra-insurgentes se generalizam, destacando as comunidades indígenas. Junto com isto se produz um auge de programas assistencialistas, com base contra-insurgente, que limita a organização política dos povos. Ou seja, estes organismos, ao invés de prover uma boa educação e uma boa saúde, optam por incentivar estes programas que não são a solução e o que as pessoas realmente necessitam. Isto gera pura dependência.

Na realidade, é necessário proteger o campo, os alimentos e a terra do avanço das transnacionais, com políticas públicas reais. Nós estamos em total desacordo com estas políticas e nosso trabalho busca informar a população sobre como esta políticas são completamente contra-insurgentes, são desmobilizadoras dos processos organizativos e, sobretudo, sustentam a economia das grandes transnacionais.

A partir do Estado, está se incentivando a produção da monocultura de palma africana, de soja e do uso dos agroquímicos que deixam, por muitos anos, a terra infértil. Isto traz como consequência a interrupção do auto-abastecimento das comunidades, colocando famílias inteiras na miséria. Então, um de nossos trabalhos fundamentais é a informação a respeito destas políticas estatais. Estes são processos de sensibilização e de formação das comunidades, que são paulatinos e que nós realizamos permanentemente.

A lei agrária não concede o direito da mulher ter a posse da terra?
Existem processos de discriminação dentro das comunidades, já que as mulheres são as que menos vão à escola, as que em geral não sabem falar espanhol. Isto leva a um processo de discriminação de gênero, como também de classe. Da mesma forma, elas não podem herdar a terra, nem possuí-la, porque é o homem o que a trabalha. A lei agrária reconhece o direito das mulheres de possuir a terra, mas na prática isto não acontece. Os núcleos “ejidales” não são capacitados para que estes direitos sejam reconhecidos. Isto está claramente ligado ao desejo do Estado de realizar um plano de privatização de grande escala.

Quais são as estratégias de expropriação da terra?
Nós consideramos que o exercício dos direitos humanos está relacionado com a natureza. A educação está associada com a soberania alimentar, com a agroecologia, etc. Se não existe isto, dificilmente poderá se fazer valer os direitos humanos. Então, trabalhamos muito relacionando a terra com os direitos humanos. É preciso levar em consideração que as mulheres historicamente foram excluídas da propriedade da terra, por isso, para nós é tão importante colocar na base o direito destes povos de usufruir a terra, subsistir cultivando e, fundamentalmente, não ceder jamais neste direito. De outro lado, a privatização é o objetivo último, que muitas vezes acontece por meio de estratégias legislativas, educativas e outras. Junto com isto, apresentam-se formas de paramilitarização, que são grupos da própria população indígena que são preparados pelo exército para atacar seus próprios vizinhos. Então, aparentemente é o próprio povo indígena que está atacando. Isto dilui a organização política e gera um duplo dano, pois é uma matança entre os próprios povos.

O que chamam de “guerra de baixa intensidade”?
Eu acredito que já não é mais de “baixa” intensidade, mas é o termo que se utiliza. Este termo se refere ao fato de que não existe uma permanente guerra de enfrentamento armado, mas existem ações que vão minguando a vida e a possibilidade de transformação, com diferentes estratégias. O escasso investimento em saúde e em educação produz uma fragilização muito forte da sociedade. Ao mesmo tempo, são incentivados programas assistencialistas, que propõem ajuda econômica às famílias, desde que estas se distanciem do Movimento Zapatista, ou cooptando o seu tempo para que não participem das reuniões. Assim, estas políticas assistencialistas escondem a falta de investimento em saúde e educação. Como consequência, por exemplo, em Chiapas as pessoas ainda morrem por doenças gastrointestinais que, de um modo geral, são muito fáceis de curar em nossa época.

Nos últimos anos, foram registrados muitíssimos desaparecidos. Quais são as causas?
No México, existe o Tribunal dos Povos, local onde são denunciadas as várias violações aos direitos humanos, na base da guerra contra o narcotráfico, que foi estimulada pelo governo de Calderón. As forças da ordem e os narcotraficantes desapareceram com milhares de pessoas, deixando desamparados milhares de órfãos. Existem comparações estatísticas, que agora não possuo em mãos, que mostram que a guerra contra o narcotráfico provocou muito mais mortes do que as guerras realizadas abertamente. Na realidade, isto não foi mais do que uma guerra contra o povo, baseada no terror. Estas formas de políticas apontam, fundamentalmente, para a desterritorialização dos povos, expulsando as pessoas de suas terras para poder usá-las em benefício do mercado. E, neste contexto, os meios de comunicação, cuja linha editorial em geral está abalizada pelo Banco Mundial e os grandes poderes transnacionais, não informam claramente com números, com estatísticas, sobre o que acontece.

Que relação o Centro possui com o MZLN? Desde o início, o Movimento Zapatista incluiu mulheres em seu exército.
Eu acredito que nisso existe um processo muito interessante, pois é o próprio povo se organizando. Nós acompanhamos o processo, mas não somos as agentes deste processo, eles é que são. O Movimento Zapatista é uma organização independente. Nós somos adeptas da Outra Campanha, assumimos a sexta declaração da selva Lacandona. Obviamente, acreditamos na transformação que o movimento está realizando. Mesmo assim, temos nossa própria linha de trabalho. Retomamos e concordamos com os fundamentos do movimento, alinhando-nos num processo antissistêmico, anticapitalista e antipatriarcal. Apoiamos o processo que estão realizando com a agroecologia, e apoiamos a autonomização que eles incentivam. O Centro trabalha de maneira independente, fundado numa linha claramente feminista e em defesa dos direitos humanos.

sábado, 13 de abril de 2013

Culpabilização da vítima: Horror nas Maldivas, horror no Brasil

por Patty Kirsche

Há algumas semanas, o caso de uma menina de 15 anos sentenciada a ser chicoteada nas Maldivas chocou o mundo. Ela havia sido estuprada pelo padrasto, inclusive engravidou. Em vez de ser amparada e receber apoio psicológico, ela foi condenada por ter "feito sexo antes do casamento". Fornicação, que pelas leis do país em questão é passível de punição, necessita da participação de pelo menos duas pessoas. Mas em 2011, 90% das pessoas sentenciadas à receber chicotadas eram mulheres.

Felizmente, quase dois milhões de assinaturas numa petição online conseguiram sensibilizar o presidente das Maldivas, e ele pediu que o promotor responsável reconsiderasse o caso. É claro que o caso dessa garota é só mais um dentro duma cultura explicitamente patriarcal. Mas a pressão mundial nesse caso abre um precedente importante que pode resultar numa mudança da forma como as mulheres são tratadas nas Maldivas.

Por mais estranho que pareça, é muito comum que vítimas de estupro sejam responsabilizadas pela agressão. O filme Preciosa (2009) retrata perfeitamente uma situação assim. O pai de Preciosa começa a abusar dela aos três anos, e a mãe dela fica com raiva da filha por ciúme do marido. O homem prossegue com o abuso sistemático da garota, que se sente tão indefesa que nem ousa reclamar, lutar ou gritar. Sua mãe então vê o estupro como sua filha transando com seu homem.

Há uns dois dias, Gerald Thomas abusou da panicat Nicole Bahls diante das câmeras. Aparentemente, um homem que gosta de exibir o pau em público achou que uma moça de vestido curto diante dele está lá para ser molestada. Muitas pessoas comentaram que Nicole não tem o direito de reclamar, pois trabalha no "Pânico".

Eu sei que o programa Pânico é estruturalmente misógino. Apresenta mulheres como animais domésticos que não têm direito de pensar. Mas não é porque o programa é um lixo que os funcionários vão perder o status de pessoas humanas. Mesmo porque, toda essa justificativa só aparece quando uma mulher é molestada, mas quando homens apanharam fazendo suas famosas "brincadeiras", rolou processo judicial com direito a amplo apoio midiático.

Existe uma tendência social em se colocar respeito como algo por que mulheres precisam lutar, como se não fosse um direito natural de cada ser humano. E isso acontece por uma razão ao mesmo tempo muito simples e muito trágica: mulheres não são entendidas como seres humanos. Mulheres precisam o tempo inteiro provar que merecem entrar num restrito grupo ao qual homens têm acesso desde o nascimento pela mera posse de um pênis.

Tive a oportunidade de ler um excelente texto abordando esse lamentável incidente. Gostaria de destacar a explicação que o autor, Marcos Donizetti, dá sobre mulheres que culpam vítimas de estupro e/ou abuso sexual. Afinal, o que acontece na cabeça de mulheres que culpam a vítima? Acontece que o abuso de outra mulher deixa claro para todas as outras o quanto elas não estão seguras:

"Essa mulher tem uma fantasia de segurança que funciona nos seguintes termos: 'se eu me comportar segundo a Lei, não sofrerei abuso. Preciso agir segundo o código, calar minha voz e esconder meu desejo, e assim estarei segura'. Diante da violentada, essa fantasia cai por terra, 'se ela foi abusada, eu também poderei ser', e esse pensamento é por demais insuportável. A saída mais rápida é culpar essa outra que não cumpriu o código, uma defesa ruim que mantém a ilusão de segurança" (DONIZETTI, 2013).
    
Mulher se apresentando como objeto
Sendo assim, podemos pensar que a culpabilização da vítima acaba sendo um mecanismo de defesa das mulheres numa patriarquia. Enquanto a violência sexual continuar sendo utilizada no controle da sexualidade feminina, a culpabilização das vítimas continuará trazendo alívio para uma parte das mulheres escravizadas pela cultura.

Não sei se existe uma solução, mas ainda sonho com o momento em que as mulheres se perceberão e reconhecerão umas às outras como pessoas, e não como seres de segunda classe. Porque neste dia, toda
mulher será digna de respeito independente do número de parceiros, das roupas que veste, ou do trabalho que exerce, simplesmente por que mulheres são humanas.

Uma pessoa nunca se coloca como objeto. Os outros é que a encaram como tal.
 


Postagem original em http://pattykirsche.blogspot.com/2013/04/culpabilizacao-da-vitima-horror-nas.html

A cultura do estupro grita, mas ninguém ouve




Pragmatismo Politico
Postado em: 12 abr 2013 às 14:23

“Acabar com a cultura do estupro é um processo social, coletivo, 
mas também individual.
 Temos de encarar nossos corpos como nossos e de mais ninguém, 
além de repensarmos o sexo, transformando-o no que realmente é: 
prazeroso e consensual. Qualquer coisa fora disso é agressão”  

Em entrevista à coluna Gente Boa, do jornal O Globo, Gerald Thomas falou sobre o episódio que teve com Nicole Bahls, quando enfiou a mão dentro do vestido da integrante do Pânico na Band, durante o lançamento de seu livro, na última quarta (10).


Thomas disse que “meteu a mão na menina”, mas que “tudo termina em panos quentes”, como todas as coisas no Brasil, que é um “paisinho de quarto mundo”, um “Corsa que quer ser Mercedes”.

Nádia Lapa, em seu blog, escreveu sobre o episódio. Leia abaixo.

 

A cultura do estupro gritando – e ninguém ouve

Como a essa altura vocês já devem saber, Gerald Thomas tentou colocar as mãos por dentro do vestido da Nicole Bahls durante um evento no Rio. Era noite de lançamento de um livro dele e a Livraria da Travessa estava lotada. Repórteres, cinegrafistas, funcionários da loja, clientes.


Gerald Thomas justificou mão em partes íntimas de Nicole: 
“No Brasil, um paisinho de quarto mundo, 
tudo termina em panos quentes”

Pelas notícias, ninguém fez nada. Nas imagens dá para ver que o colega de trabalho de Nicole no Pânico continuou a entrevista como se nada tivesse acontecendo. Enquanto isso, Thomas enfiava a mão entre as pernas de Nicole e ela tentava se desvencilhar.

Sempre rolam os xingamentos à mulher, claro. São os usuais: que ela estava pedindo, que ela estava gostando, que o trabalho dela é esse mesmo, que a roupa era justa. Vocês estão cansados de saber quais as justificativas injustificáveis para o assédio e a agressão sexual.

Mas duas coisas me chamam a atenção nesse caso. A primeira é ninguém ter feito nada. Acharem normal. Acharem aceitável. Se a agressão tivesse sido com uma atriz considerada recatada, as pessoas reagiriam da mesma forma?
Duvido. Indignar-se-iam, aposto. Muita gente nas redes sociais se posicionou e apontou o comportamento de Gerald Thomas como agressão, mas a imprensa tratou como algo que “Nicole não esperava”, mostrando o assunto como mero constrangimento.




 
Se a mulher geralmente já é tratada como “coisa”, como um objeto para deleite masculino, quando ela tem seu corpo e sua sexualidade transformada em um produto vendável, tudo só piora. Nicole faz sucesso porque tem um corpão, segundo os padrões de beleza atuais. Ela aparece de biquini na televisão, tira fotos “sensuais”, usa roupas curtas e provocantes. Como ela “provocou” (apenas sendo quem ela é), ela merece ser apalpada por um estranho.

Porém, não existe isso de “provocar”. Gerald Thomas não é um animal irracional. Ele – e eu e você – deve esperar o consentimento do outro para poder tocar em seu corpo. Nicole Bahls claramente disse “não”, ao tentar tirar as mãos de Thomas. Parece que não é suficiente, como não é suficiente quando viramos o rosto para evitar o beijo do desconhecido na balada.

Criou-se a ideia de que o homem deve insistir e insistir, enquanto a mulher tenta guardar algo. O “não” é visto como “talvez”. No entanto, se a mulher transforma o talvez em um “deixa pra lá”, ela na verdade não está consentindo. Não é um “sim” entusiasmado, intenso, certeiro, como deve ser em qualquer relação. É um “sim” por convenção social, por achar que ele já fez demais, que agora merece o contato sexual, que é melhor ceder e se livrar logo. Isso não é consentimento, é coerção.

O pior é que esses caras não se veem como agressores, uma vez que todo mundo encara tais comportamentos como “normais”. Brad Perry tem uma frase ótima em Yes Means Yes*: “estes homens acreditam piamente que “não” significa “insista”, e nunca se veem como estupradores, apesar de admitirem o padrão de ignorar e suprimir a resistência verbal e física”.

A segunda coisa que me incomoda no caso é terem dito “mas porque ela não fez algo?”. Infelizmente, a maior parte das pessoas que sofre algum tipo de agressão (não só sexual) não faz alguma coisa. Ser vítima é costumeiramente confundido com “ser frágil”. É difícil encarar polícia, legista, imprensa, opinião pública. No caso desse post, o cara estava agredindo na frente de todos – e ninguém fez nada.

Se fosse você a vítima, você não pensaria que a errada é você por não estar gostando, já que todo mundo está achando muito normal?

Lisa Jervis discorre sobre isso no mesmo livro: “estou falando de uma construção cultural nojenta, destrutiva, que encoraja as mulheres a culparem a vítima, a se odiarem, a se culparem, a se responsabilizarem pelo comportamento criminoso dos outros, a temerem seus próprios desejos e a desconfiarem dos seus próprios instintos”.

Se o corpo da mulher é ainda visto como “de todos”, como acontece no caso daquelas que usam a sexualidade para “vender”, fica ainda mais difícil ter noção de que o corpo lhes pertence. Que é só seu. Que ninguém, ninguém pode tocá-lo sem consentimento.

Acabarmos com a cultura do estupro é um processo social, coletivo, mas também individual. Nós temos que encarar nossos corpos como nossos e de mais ninguém, além de repensarmos o sexo, transformando-o no que realmente é: prazeroso e consensual. Qualquer coisa fora disso é agressão.


*Yes Means Yes é um livro de Jessica Valenti e Jaclyn Friedman sobre a cultura do estupro. É uma coletânea de artigos muito interessante e que recomendo muito. O texto de Brad Perry se chama Hooking up with healthy sexuality: the lessons boys learn (and don’t learn) about sexuality, and why a sex-positive prevention paradigm can benefit everyone involved.
Pragmatismo Politico

Gerald Thomas é uma vergonha para a raça masculina

sexta-feira, 12 de abril de 2013

saraiva13
  (retirei a foto do episódio por me negar a promover um escroto sem noção)

Ao botar a mão embaixo do vestido de Nicole Bahls à força, o covarde dramaturgo exemplificou o que existe de pior entre nós homens.

O colega da panicat nada fez contra o agressor, numa atitude igualmente ridícula

Nunca acompanhei o Pânico, quem dirá as notícias relativas a ele. Uma imagem postada no Facebook, porém, me chamou a atenção para o programa. Trata-se do dramaturgo carioca Gerald Thomas colocando a mão embaixo do vestido da panicat Nicole Bahls, contra a vontade dela, durante a gravação de uma entrevista. A foto vinha com um texto assinado pela blogueira Nádia Lapa, do site Cem Homens. Ela narra o episódio:

Era noite de lançamento de um livro dele e a Livraria da Travessa estava lotada. Repórteres, cinegrafistas, funcionários da loja, clientes. Pelas notícias, ninguém fez nada. Nas imagens dá para ver que o colega de trabalho de Nicole no Pânico continuou a entrevista como se nada tivesse acontecendo. Enquanto isso, Thomas enfiava a mão entre as pernas de Nicole e ela tentava se desvencilhar. (…)

Duas coisas me chamam a atenção nesse caso. A primeira é ninguém ter feito nada. Acharem normal. Acharem aceitável. (…) A segunda coisa que me incomoda é terem dito “mas por que ela não fez algo?”. É difícil encarar polícia, legista, imprensa, opinião pública. Além disso, o cara estava agredindo na frente de todos – e ninguém fez nada. Se fosse você a vítima, você não pensaria que a errada é você por não estar gostando, já que todo mundo está achando muito normal?

Fica até difícil saber de quem foi o maior papelão no episódio: de Gerald Thomas por agarrar Nicole Bahls à força ou dos homens que presenciaram a cena sem fazer nada. Entre eles seu colega de Pânico Wellington Muniz, o Ceará, que deveria ter sido o primeiro a dar uma chave de rim no agressor durante a investida dele. “Fiquei muito triste”, escreveu ela no Twitter, ao ser questionada sobre o assunto. “Obrigada de coração pelo carinho. Amanhã é outro dia. Vai passar.”

Há séculos os filósofos dizem que a perfeição é um conceito inatingível para o ser humano e que, por isso, devemos aprender a conviver com as nossos defeitos. Concordo. Existe um deles, porém, que é intragável: a covardia. Gerald Thomas foi covarde ao agarrar uma mulher indefesa (eu adoraria vê-lo fazendo isso com Ronda Rousey, a campeã do UFC) e também foram covardes os homens que assistiram sua atitude sem fazer nada.

Por isso digo que o episódio da Livraria da Travessa foi, sem dúvida, uma mancha para a nossa raça masculina. E deveríamos ter vergonha por ele ter acontecido. Eu tenho.
 
 

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Selvageria à Brasileira

Isto É N° Edição:  2264 |  05.Abr.13 - 21:00

A barbárie dos estupros coletivos cometidos por um bando no Rio de Janeiro expõe um País em guerra com as mulheres. Em apenas três anos, triplicou o número de casos, o que coloca o Brasil em situação tão inaceitável quanto a da Índia

Wilson Aquino, Tamara Menezes e Laura Daudén

Uma moça de 21 anos, evangélica, nascida em uma pequena cidade fluminense, passava férias no Rio de Janeiro, em março. No sábado 23, ela e um amigo resolveram conhecer a Lapa, bairro boêmio da cidade. Na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, uma das mais movimentadas da zona sul, tomaram uma van. Era madrugada. Nesse veículo, a jovem perdeu a virgindade de forma brutal. Foi estuprada por três criminosos que se revezaram no ato covarde durante uma hora. Depois do crime, ela foi abandonada em uma rua da cidade vizinha de Niterói. Sem saber do paradeiro do amigo, expulso do coletivo antes do ataque, ela começou a correr “feito louca por ruas que não conhecia”, como disse à ISTOÉ. Depois de finalmente conseguir ligar para o pai, a jovem se dirigiu à Delegacia de Atendimento à Mulher (Deam). Se a denúncia apresentada por ela naquela noite tivesse sido investigada, outra jovem de 21 anos poderia ter tido destino diferente. No sábado 30, uma turista americana que fazia intercâmbio foi estuprada pelo bando. A barbárie dos ataques sexuais expôs um Brasil em guerra com as mulheres, um estado de selvageria chocante no qual o poder público se mostra ineficiente para protegê-las.

O mesmo grupo pode ter cometido até dez crimes similares, segundo estimativas do delegado Alexandre Braga, da Delegacia Especial de Atendimento ao Turista. Por enquanto, a polícia carioca confirmou três, está em vias de fechar a apuração de um quarto estupro e investiga outras seis vítimas que não chegaram a registrar denúncia. 

A extensão da violência desse caso 
faz parte de um quadro mais amplo e aterrador: 
em 2012, a cada 24 horas, dez brasileiras foram estupradas por desconhecidos. 
Entre 2009 e 2012, esse tipo de crime teve um aumento de 162%, segundo o Ministério da Saúde. 
No mesmo período, o total de notificações de estupro triplicou. 
Segundo o Instituto de Segurança Pública, só na capital fluminense são registrados 16 estupros por dia. 
 Em São Paulo, conforme dados da Secretaria de Segurança Pública, o número chega a 35. 
Essas denúncias incluem agressões sexuais antes consideradas “atos libidinosos”, como beijos forçados, que passaram a ser enquadrados no espectro do crime de estupro em 2009, além de violações cometidas contra crianças e homens, dentro e fora do ambiente doméstico.

A denúncia da turista americana gerou uma resposta das autoridades policiais – muito diferente da dispensada à jovem brasileira. Em menos de 12 horas, os suspeitos foram identificados e presos em flagrante. Eles são Jonathan Froudakis de Souza, conhecido como “Gordinho”, 21 anos, Wallace Aparecido Souza Silva, o “Cachorrão”, 19 anos, e Carlos Armando Costa dos Santos, o “Baby”, 21 anos. A quadrilha é composta por mais duas pessoas, que continuam foragidas. Eles seguem o perfil delineado por Danilo Baltieri, coordenador do Ambulatório de Transtornos da Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC, para quem as características do criminoso que pratica um estupro coletivo são diferentes daquelas apresentadas por outros estupradores. “Trata-se de um grupo de homens que compartilha crenças, que se crê imbatível, superior”, diz. “Eles normalmente já estão envolvidos em outros crimes e cometem a agressão sexual mesmo sabendo que é uma prática abominável inclusive dentro da cultura penitenciária.”


Ainda traumatizada, a moça que sonhava ter sua primeira relação sexual com um homem que amasse contou à ISTOÉ que os bandidos também praticaram tortura psicológica. “Falavam que queimariam a van comigo dentro. Cheguei a falar para eles: vocês não têm irmã nem mãe? Eles apenas riram, sem um pingo de humanidade”, diz ela, que lamenta a inércia da polícia. “Se tivessem dado atenção ao meu caso, talvez não tivesse acontecido de novo.”

Imediatamente após saber da prisão de seus algozes, ela e o pai procuraram a polícia para fazer o reconhecimento. Ao saber que a denúncia da jovem brasileira não tinha sido investigada, a chefe de Polícia do Rio, delegada Martha Rocha, exonerou a delegada da Deam de Niterói, Marta Dominguez, e a perita de São Gonçalo, Martha Pereira. “Quando as vítimas chegam à delegacia para registrar estupro, as primeiras perguntas sugerem que a mulher é responsável pelo crime. Somos vistas como objeto de desejo e propriedade e, sendo assim, podemos ser culpadas pelo abuso”, diz a secretária nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, Aparecida Rodrigues.

O caminho percorrido pela turista americana foi outro: ela se dirigiu ao Consulado Americano e, de lá, na companhia de uma assistente social, seguiu até a delegacia do turista. Em seu depoimento consta que ela foi estuprada pelos três criminosos na presença de seu namorado, um francês de 23 anos, que, tal como ela, estudava português no Brasil. A americana voltou para os Estados Unidos na segunda-feira 1º. Seu namorado continua no País e tem colaborado com a polícia, apesar de ainda estar em de choque. Por envolver dois turistas estrangeiros, o caso gerou grande repercussão internacional: jornais de todo o mundo lembraram que, apesar da patente falta de segurança, o Rio será palco de eventos como a Copa das Confederações e a Jornada da Juventude, ainda este ano, a Copa do Mundo, em 2014, e a Olimpíada, em 2016. O episódio foi amplamente comparado ao ocorrido na Índia em dezembro de 2012, quando uma jovem estudante sofreu um estupro coletivo dentro de um ônibus. A repercussão do caso indiano resultou em uma redução de 25% no número de turistas que visitaram o país no primeiro trimestre deste ano em comparação ao mesmo período do ano passado. “O mercado turístico é muito sensível a esse tipo de notícia. A pessoa que não conhece um lugar passa a conhecê-lo através de um acontecimento que fere a sensibilidade das pessoas civilizadas e acaba pensando duas vezes antes de viajar”, diz o sociólogo Williams Gonçalves, do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).


O turismo, no entanto, é a parte menos sensível e relevante do problema. O crime mostra que o notável avanço da legislação brasileira na última década e o expressivo aumento no número de notificações não foram acompanhados de uma maior mobilização do poder público para punir os responsáveis. Apesar da inexistência de dados oficiais sobre a taxa de condenação dos agressores processados, um estudo publicado em 2009 por Sérgio Adorno, do Núcleo de Estudos de Violência da USP, e por Wânia Pasinato, do Núcleo de Estudos de Gênero da Unicamp, mostra que apenas 36,4% dos boletins de ocorrência de casos de estupro são convertidos em inquérito policial, mesmo quando se conhece o autor do delito. Outra investigação publicada em 2007 pela pesquisadora Joana Vargas, do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana da UFRJ, mostra que apenas 9% dos casos reportados de estupro na cidade de Campinas (SP) resultaram em condenação.

Respostas para essa impunidade podem estar na maneira como a sociedade e o poder judiciário olham para as mulheres. Em sua tese de doutorado, a pesquisadora da USP Daniella Coulouris ressalta que, por normalmente contar com poucas provas materiais e testemunhas, o julgamento de casos de estupro está essencialmente calcado nos depoimentos das vítimas. Além de contornar a dor que supõe recordar, detalhar e expor a violência sofrida, o testemunho das mulheres tem de superar a inerente e histórica desconfiança com a qual se aceita a palavra feminina. “Essa questão demonstra que um julgamento de estupro é especialmente desfavorável às vítimas, porque a doutrina, a jurisprudência e os juízes presumem o consentimento por parte da mulher adulta, cabendo à vítima provar o contrário”, afirma a pesquisadora na tese.



Esse exemplo expõe as camadas mais profundas do problema: para acabar com a violência contra a mulher, é necessário alcançar a estrutura patriarcal milenar que organiza as sociedades e que se sobrepõe a qualquer fronteira geográfica e econômica. Segundo Nalu Faria, da coordenação nacional da Marcha Mundial das Mulheres, esse patriarcado se manifesta de maneira singular e ambígua no País. “O Brasil é teoricamente livre do ponto de vista da sexualidade, mas se utiliza dessa liberdade para desqualificar e culpar as mulheres”, diz. “Não temos de andar cobertas por um véu nem somos proibidas de dirigir, mas seguimos sujeitas a uma ideia de inferioridade que molda a maneira como as pessoas tratam as mulheres.” 

Luiza Eluf, procuradora aposentada do Ministério Público, 
afirma que o Brasil vive imerso em uma cultura de estupro
que envolve o desrespeito à mulher em todos os âmbitos de sua vida. 

“Ela é estuprada emocionalmente, intelectualmente, culturalmente todos os dias. Essa é a regra”, diz. 
Para ela, a situação da opressão no Brasil é um “vexame internacional”, especialmente por explicitar a negligência com que as delegacias lidam com os casos de violência contra a mulher. 


A divulgação, no último ano, de outros casos de estupro especialmente cruéis envolvendo mais de dois agressores, aponta para um recrudescimento da violência machista. Em fevereiro de 2012, na pequena cidade paraibana de Queimadas, cinco mulheres foram estupradas durante uma festa de aniversário e duas delas acabaram assassinadas por reconhecerem seus algozes. Os nove suspeitos (três deles menores de idade) foram condenados. Poucos meses depois, duas adolescentes de 16 anos foram estupradas por nove integrantes da banda de pagode New Hit, na cidade baiana de Ruy Barbosa. O episódio, que tem mobilizado os principais movimentos feministas brasileiros, deve ser julgado em setembro. A procuradora Marisa Marinho, responsável pelo caso, espera que os agressores recebam pena mínima de dez anos. “Entendemos, contudo, que não há dinheiro, valor pecuniário, que apague as lembranças da noite de terror e violência sexual vivida pelas duas jovens, que borre as dores, os traumas e as perdas experimentadas por elas e suas famílias”, afirma.“Nenhuma indenização, por mais vultosa que seja, devolverá às adolescentes a vida que tinham antes.”  

Foto: Frederic Jean/cena produzida com atoresa
Fotos: VANDERLEI ALMEIDA/afp photo;
* Fontes: Sinan, Organização Mundial da Saúde, ONU Mulheres, Departamento de Justiça dos EUA
Foto: produção Cintia Sanchez

terça-feira, 9 de abril de 2013

Muçulmanas são pressionadas a não delatar maridos violentos na Grã-Bretanha

"

unisinos 

Devo contar à polícia? Tenho medo de ficar em casa com ele", diz uma mulher muçulmana a um conselheiro, em um Conselho de Sharia (lei islâmica) na Grã-Bretanha. Ela está relatando um suposto caso de abuso doméstico.
"Ele te bate? Deixa marcas em seu corpo? Pergunte o que o incomoda - se é a sua comida, se é o fato de você sair com as amigas", responde o conselheiro. "A polícia deve ser o último recurso. Para onde você vai (ser levada)? Para um abrigo? É uma opção muito ruim."

A reportagem é publicada pela BBC Brasil, 07-04-2013.

Casos semelhantes a esse, identificados pelo programa Panorama, da BBC, indicam que alguns conselhos que aplicam a sharia em território britânico podem estar colocando as mulheres "em risco", ao pressioná-las a persistir em casamentos marcados pela violência.

Em uma pequena casa no leste de Londres, uma mulher e seu marido discutem em frente a um acadêmico islâmico, em uma sala que se parerce a um tribunal.

Trata-se do Conselho de Sharia de Leyton, e o dr. Suhaib Hasan decidirá se a mulher tem direito ao divórcio, a contragosto do marido.

A mulher acusa-o de não trabalhar, ignorar as crianças e de abusos verbais. Ele nega com veemência. Quando Hasan ordena o marido a deixar a sala, a mulher cai em prantos.

"Odeio ele, não posso sequer olhar para ele, ele arruinou a minha vida", ela diz.
Hasan decide que o casal deve ficar um mês separado para tentar salvar o matrimônio, com a ajuda de Alá.


Disputas conjugais
O Conselho de Sharia de Leyton é o mais antigo conselho islâmico da Grã-Bretanha e um dos mais ativos, lidando com cerca de 50 casos por mês - principalmente disputas conjugais. Nove entre dez casos são trazidos por mulheres muçulmanas de todo o Reino Unido.

Em um casamento islâmico, é bem mais fácil para o homem obter o divórcio. No caso das mulheres, esses conselhos são a única opção.

"Não estamos aqui apenas para emitir divórcios", diz Hasan. "Primeiro, tentamos mediar. Tentamos salvar casamentos, reconciliar (o casal)."

Mas as normas islâmicas aplicadas ali nem sempre beneficiam as mulheres e podem até se opor às leis britânicas.

Em Leeds, norte da Inglaterra, a BBC conheceu Sonia, que sofreu duras 
agressões de seu marido - chutes, socos, uma queda da escada. Ele também batia no filho dos dois. Sonia obteve um divórcio civil, e a Justiça determinou que o homem só teria acesso indireto às crianças.

As cortes de sharia não têm direito de interferir em questões de guarda de filhos, mas, quando Sonia dirigiu-se ao Conselho de Leyton para obter um divórcio islâmico, ouviu que teria de entregar as crianças ao ex-marido.

"Não podia sequer pensar em dar meus filhos a uma pessoa tão violenta", diz 
ela. "O mais chocante é que, quando expliquei isso, a reação foi: 'você não pode ir contra o que diz o Islã'."

No final das contas, Sonia conseguiu que sua exigência fosse mantida.
Questionado, o conselho disse à BBC que, no caso de divórcios, é importante que ambos os pais tenham acesso aos filhos, mas cumprindo-se a lei britânica e cuidando da segurança das crianças.


'Último caso'

Após ver a face pública do Conselho de Sharia de Leyton, a BBC mandou uma repórter com uma câmera escondida, para saber que tipo de aconselhamento ela receberia no papel de uma mulher vulnerável.

A história contada foi de que ela apanhava do marido. E o diálogo é o retratado no início desta reportagem.

O governo britânico orienta que violência doméstica é crime e deve ser relatado à polícia. Mas Hasan diz à repórter que isso deve ocorrer "só em último caso", se o marido ficar "muito agressivo".

Sua mulher, uma conselheira no mesmo centro, também orienta a repórter disfarçada a não recorrer à polícia, mas sim a pedir ajuda à família.

Questionados a respeito das gravações secretas, os funcionários do Conselho de Sharia de Leyton responderam que é essencial envolver a polícia em casos de violência doméstica, mas que o passo pode ter consequências irrevogáveis.

A BBC mostrou a gravação secreta a Nazir Afzal, promotor britânico e também muçulmano.

"Estou decepcionado, mas não surpreso", diz Afzal. "A maioria (dos conselhos de sharia) são bons, mas alguns claramente colocam as mulheres em risco."

A BBC conversou com outra mulher que tentou obter o divórcio em conselho de sharia em Dewsbury, também no norte da Inglaterra. O marido de Ayesha foi preso, acusado de violência, mas o conselho de sharia disse a ela que os dois teriam de se encontrar para uma sessão de mediação.

"Respondi que ele sequer pode chegar perto da minha casa, porque tenho medo de vê-lo. Mas eles ignoraram", diz ela.

Ela acabou conseguindo uma audiência no conselho sem a presença do marido, mas teve de enfrentar cinco homens sozinha, e sem um advogado. Foram necessários dois anos até que conseguisse um divórcio islâmico.

O Conselho de Sharia de Dewsbury disse que não comenta casos individuais, mas afirmou que nunca faria seus clientes descumprirem ordens da Justiça britânica.

Grito da violência silenciada




"É dever dos Estados atuar com a devida diligência para prevenir, investigar, processar, punir e reparar a violência contra a mulher, assegurando às mulheres recursos idôneos e efetivos. A tolerância estatal à violência contra a mulher perpetua a impunidade, simbolizando uma grave violência institucional que se soma ao padrão de violência sofrido por mulheres", escrevem Flávia Piovesan e Silvia Pimentel, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 07-04-2013. 

Flávia é professora doutora da PUC/SP, membro do Cladem (Comitê Latino-Americano e do Caribe para a defesa dos direitos da mulher) e do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana e procuradora do estado.
Sílvia é professora doutora da PUC/SP, membro do Cladem, membro da comissão de Cidadania e Reprodução e membro do Comitê da ONU sobre a Eliminação da Discriminação Contra a Mulher.


Eis o artigo.
Em 30 de março, cinco homens estupraram uma turista americana e espancaram seu namorado francês em uma van que circulava em Copacabana

Em 16 de março, uma mulher suíça, viajando de bicicleta na região central da Índia com o marido, foi vítima de estupro perpetrado por oito homens. 

Em 10 de fevereiro, um grupo de cinco homens mascarados estuprou seis espanholas em uma casa de praia próxima a Acapulco, no México. 

Em 26 de dezembro, o estupro coletivo de uma mulher em um ônibus em Nova Délhi chocou a comunidade internacional, gerando profunda comoção e intensos protestos - fomentando a criação de uma comissão nacional na Índia que recebeu mais de 80 mil sugestões para fortalecer as medidas de combate à violência contra a mulher.

A gravidade e a brutalidade do estupro rompem o silêncio da violência epidêmica contra a mulher, realçando seu componente cultural como expressão de relações de poder historicamente desiguais e assimétricas entre homens e mulheres. Em virtude da intencionalidade do agente e do profundo sofrimento físico, psíquico e moral causado à vítima, a jurisprudência internacional tem equiparado o estupro à tortura.

No caso brasileiro, o Mapa da Violência 2012 publicado pelo Instituto Sangari aponta que, de 1980 a 2010, foram assassinadas no país em média 91 mil mulheres. A mesma pesquisa ressalta que 

duas em três pessoas atendidas no SUS  
são mulheres vítimas de violência doméstica ou sexual.

Fruto de reivindicação do movimento de mulheres, a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher foi adotada pela ONU em 1979, sendo hoje amplamente ratificada por 187 Estados. Embora a convenção não explicite a temática da violência contra a mulher, o Comitê da ONU sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher adotou relevante recomendação geral sobre a matéria, afirmando que: "A violência baseada no gênero é uma forma de discriminação que seriamente impede a mulher de exercer seus direitos e liberdades com base na igualdade com relação ao homem".

Para a ONU, a violência contra as mulheres é um fenômeno generalizado, que alcança um elevado número de mulheres, sem distinção de raça, classe, religião, idade ou qualquer outra condição.
 
No âmbito da ONU, o secretário-geral Ban Ki-moon, em discurso perante a Assembleia Geral no último Dia Internacional da Mulher (8/3/2013), reiterou o compromisso das Nações Unidas no combate à atual epidemia mundial de violência contra a mulher. 

Segundo a ONU, 
sete em dez mulheres no mundo já foram vítimas de violência física e/ou sexual em algum momento de sua vida 
(dado da Campanha Unite to end Violence against Women, lançada pelo secretário-geral em 2008).


Nesse sentido, a Comissão sobre o Status da Mulher (CSW na sigla em inglês) da Assembleia-Geral da ONU, aprovou, durante sua 57ª sessão, realizada entre 4 e 15 de março de 2013, uma resolução contendo as conclusões de seus países-membros sobre a eliminação e prevenção de todas as formas de violência contra mulheres e meninas. A resolução demanda expressamente que os Estados acelerem esforços para desenvolver, revisar e fortalecer políticas para combater as causas estruturais de violência contra mulheres e meninas, incluindo discriminação e estereótipos de gênero, desigualdades e desequilíbrio nas relações de poder entre homens e mulheres, entre outros fatores. Reitera, ainda, a necessidade de empreender esforços com vistas a erradicar a pobreza e as persistentes desigualdades econômicas, sociais e legais principalmente por meio do fortalecimento da participação econômica de mulheres e meninas, como uma forma de diminuir o risco de violência.

De volta ao Brasil, em absoluta harmonia com os parâmetros protetivos internacionais, a Lei Maria da Penha inaugurou uma política integrada para prevenir, investigar, sancionar e reparar a violência contra a mulher. A adoção da Lei Maria da Penha permitiu afastar a omissão do Estado brasileiro, que estava a caracterizar um ilícito internacional ao violar obrigações jurídicas internacionalmente contraídas quando da ratificação de tratados internacionais.

É dever dos Estados atuar com a devida diligência para prevenir, investigar, processar, punir e reparar a violência contra a mulher, assegurando às mulheres recursos idôneos e efetivos. A tolerância estatal à violência contra a mulher perpetua a impunidade, simbolizando uma grave violência institucional que se soma ao padrão de violência sofrido por mulheres.

Nesse contexto, há urgência na adoção de medidas voltadas à prevenção e à repressão da violência sexual do estupro, bem como à proteção de suas vítimas. Fundamental é avançar no Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra a Mulher, lançado em 2007, envolvendo todas as esferas federativas com o objetivo de consolidar uma Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, por meio da implementação de políticas públicas integradas.

Entre os desafios ao enfrentamento da violência sexual do estupro, destacam-se:

1) mapear a situação da violência sexual contra a mulher (mediante a sistematização de dados, adotando ficha de notificação compulsória de casos de violência sexual nos serviços de saúde, identificando o alcance, o impacto e as vítimas da violência);

2) ampliar ações de conscientização e sensibilização pública, por meio de campanha nacional contra a violência sexual contra as mulheres e meninas e pela promoção da igualdade de gênero;

3) fortalecer serviços de denúncia (enfrentando a impunidade, que se mostra ainda mais latente nos casos de violência sexual, que em geral nem sequer são comunicados à polícia em virtude do medo e da vergonha da vítima);

4) fomentar programas de treinamento e capacitação para enfrentar a violência sexual contra as mulheres especialmente nas áreas da segurança e da Justiça (combatendo os estereótipos de gênero baseados em preconceito que ameaçam a credibilidade da mulher, levando ao desprezo de suas denúncias);

5) avançar na atuação integrada e articulada de instituições, sob a perspectiva multidisciplinar e transetorial, visando à prevenção e repressão à violência sexual do estupro;

6) conferir proteção e assistência às vítimas; e

7) identificar e implementar as práticas exitosas para o eficaz combate à violência sexual contra a mulher.

A adoção de políticas públicas voltadas à prevenção, punição e erradicação da violência contra a mulher, em todas as suas manifestações, surge como imperativo de justiça e respeito aos direitos das vítimas dessa grave violação que ameaça o destino e rouba a vida de tantas mulheres.


Na hora de fazer, não gritou

Postado em: 8 abr 2013 às 18:26
 

Essa frase, ouvida por muitas mulheres na hora do parto, é uma das tantas caras da violência obstétrica que vitima uma em cada quatro mulheres brasileiras. Eu fui uma delas

Por Andrea Dip, Agência Pública
Eu tive meu filho em um esquema conhecido por profissionais da área da saúde como o limbo do parto: um hospital precário, porém maquiado para parecer mais atrativo para a classe média, que atende a muitos convênios baratos, por isso está sempre lotado, não é gratuito, mas o atendimento lembra o pior do SUS, porém sem os profissionais capacitados dos melhores hospitais públicos nem a infraestrutura dos hospitais caros particulares para emergências reais.


 Violência obstétrica vitima uma em cada quatro mulheres no Brasil

Durante o pré-natal, fui atendida por plantonistas sem nome. Também não me lembro do rosto de nenhum deles. O meu nome variava conforme o número escrito no papel de senha da fila de espera: um dia eu era 234, outro 525. Até que, durante um desses “atendimentos” a médica resolveu fazer um descolamento de membrana, através de um exame doloroso de toque, para acelerar meu parto, porque minha barriga “já estava muito grande”. Saí do consultório com muita dor e na mesma noite, em casa, minha bolsa rompeu. Fui para o tal hospital do convênio já em trabalho de parto.

Quando cheguei, me instalaram em uma cadeira de plástico da recepção e informaram meus acompanhantes que eu deveria procurar outro hospital porque aquele estava lotado. Lembro que fazia muito frio e eu estava molhada e gelada, pois minha bolsa continuava a vazar. Fiquei muito doente por causa disso. Minha mãe ameaçou ligar para o advogado, disse que processaria o hospital e que eu não sairia de lá em estágio tão avançado do trabalho de parto. Meu pai quis bater no homem da recepção. Enquanto isso, minhas contrações aumentavam.

Antes de ser finalmente internada, passei por um exame de toque coletivo, feito por um médico e seus estudantes, para verificar minha dilatação.
“Já dá para ver o cabelo do bebê, quer ver pai?” mostrava o médico para seus alunos e para o pai do meu filho. Consigo me lembrar de poucas situações em que fiquei tão constrangida na vida. Cerca de uma hora depois, me colocaram em uma sala com várias mulheres. Quando uma gritava, a enfermeira dizia: “pare de gritar, você está incomodando as outras mães, não faça escândalo”.

Se eu posso considerar que tive alguma sorte neste momento, foi o de terem me esquecido no fim da sala, pois não me colocaram o soro com ocitocina sintética que acelera o parto e aumenta as contrações, intensificando muito a dor. Hoje eu sei que se tivessem feito, provavelmente eu teria implorado por uma cesariana, como a grande maioria das mulheres.

Não tive direito a acompanhante. O pai do meu filho entrava na sala de vez em quando, mas não podia ficar muito para preservar a privacidade das outras mulheres. A moça que gritava pariu no corredor. Até que uma enfermeira lembrou de mim e me mandou fazer força. Quando eu estava quase dando a luz, ela gritou: “pára!” e me levou para o centro cirúrgico. Lá me deram uma combinação de anestesia peridural com raquidiana, sem me perguntar se eu precisava ou gostaria de ser anestesiada, me deitaram, fizeram uma episotomia (corte na vagina) sem meu consentimento – procedimento desnecessário na grande maioria dos casos, segundo pesquisas da medicina moderna – empurraram a minha barriga e puxaram meu bebê em um parto “normal”. Achei que teria meu filho nos braços, queria ver a carinha dele, mas me mostraram de longe e antes que eu pudesse esticar a mão para tocá-lo, levaram-no para longe de mim. Já no quarto, tentei por três vezes levantar para ir até o berçario e três vezes desmaiei por causa da anestesia. “Descanse um pouco mãezinha” diziam as enfermeiras “Sossega!” Eu não queria descansar, só estaria sossegada com meu filho junto de mim! O fotógrafo do hospital (que eu nem sabia que estava no meu parto) veio nos vender a primeira imagem do bebê, já limpo, vestido e penteado. Foi assim que eu vi pela primeira vez o rostinho dele, que só chegou para mamar cerca de 4 horas depois.

Faz exatamente nove anos que tudo isso aconteceu e hoje é ainda mais doloroso relembrar porque descobri que o que vivi não foi uma fatalidade, ou um pesadelo: eu, como uma a cada quatro mulheres brasileiras, fui vítima de violência obstétrica.

 

 Uma em cada quatro mulheres sofre violência no parto

O conceito internacional de violência obstétrica define qualquer ato ou intervenção direcionado à mulher grávida, parturiente ou puérpera (que deu à luz recentemente), ou ao seu bebê, praticado sem o consentimento explícito e informado da mulher e/ou em desrespeito à sua autonomia, integridade física e mental, aos seus sentimentos, opções e preferências.

A pesquisa “Mulheres brasileiras e Gênero nos espaços público e privado”, divulgada em 2010 pela Fundação Perseu Abramo, mostrou que uma em cada quatro mulheres sofre algum tipo de violência durante o parto. As mais comuns, segundo o estudo, são gritos, procedimentos dolorosos sem consentimento ou informação, falta de analgesia e até negligência.

(Gráfico – Reprodução)

Mas há outros tipos, diretos ou sutis, como explica a obstetriz e ativista pelo parto humanizado Ana Cristina Duarte: “impedir que a mulher seja acompanhada por alguém de sua preferência, tratar uma mulher em trabalho de parto de forma agressiva, não empática, grosseira, zombeteira, ou de qualquer forma que a faça se sentir mal pelo tratamento recebido, tratar a mulher de forma inferior, dando-lhe comandos e nomes infantilizados e diminutivos, submeter a mulher a procedimentos dolorosos desnecessários ou humilhantes, como lavagem intestinal, raspagem de pelos pubianos, posição ginecológica com portas abertas, submeter a mulher a mais de um exame de toque, especialmente por mais de um profissional, dar hormônios para tornar o parto mais rápido, fazer episiotomia sem consentimento”.

“A lista é imensa e muitas nem sabem que podem chamar isso de violência. Se você perguntar se as mulheres já passaram por ao menos uma destas situações, provavelmente chegará a 100% dos partos no Brasil” diz Ana Cristina, que faz parte de um grupo cada vez maior de mulheres que, principalmente através de blogs e redes sociais, têm lutado para denunciar a violência obstétrica tão rotineira e banalizada nos aparelhos de saúde.

“Algumas mulheres até entendem como violência, mas a palavra é mais associada a violência urbana, fisica, sexual” diz a psicóloga Janaína Marques de Aguiar, autora da tese “Violência institucional em maternidades públicas: hostilidade ao invés de acolhimento como uma questão de gênero” que entrevistou puérperas (com até três meses de parto) e profissionais de maternidades públicas de São Paulo. “Quando a gente fala em violência na saúde, isso fica dificil de ser visualizado. Porque há um senso comum de que as mulheres podem ser maltratadas, principalmente em maternidades públicas” acredita. E dá alguns exemplos: “Duas profissionais relataram, uma médica e uma enfermeira, que um colega na hora de fazer um exame de toque em uma paciente, fazia brincadeiras como ‘duvido que você reclame do seu marido’ e ‘Não está gostoso?”

(Gráfico – Reprodução)

Em março de 2012, um grupo de blogueiras colocou no ar um teste de violência obstétrica, que foi respondido de forma voluntária por duas mil mulheres e confirmou os resultados da pesquisa da Fundação Perseu Abramo. “Apesar de não terem valor científico, os resultados mostraram que 51% das mulheres estava insatisfeita com seu parto e apenas 45% delas disse ter sido esclarecida sobre os todos os procedimentos obstétricos praticados em seus corpos” lembra a jornalista mestre em ciências Ana Carolina Franzon, uma das coordenadoras da pesquisa. “Nós quisemos mostrar para outras mulheres que aquilo que elas tinham como desconforto do parto era, na verdade, a violação de seus direitos.
Hoje nós somos protagonistas das nossas vidas e quando chega no momento do parto, perdemos a condição de sujeito” opina Ana Carolina.

Desse teste nasceu o documentário “Violência Obstétrica – A voz das brasileiras” (que você pode assistir no fim da matéria) com depoimentos gravados pelas próprias mulheres sobre os mais variados tipos de humilhação e procedimentos invasivos vividos por elas no momento do parto. Uma das participantes diz que os profissionais fizeram comentários “sobre o cheiro de churrasco da barriga durante a cesárea”.

Mas talvez o relato mais triste seja o da mineira Ana Paula, que após planejar um parto natural, foi ao hospital com uma complicação e, sem qualquer explicação por parte dos profissionais, foi anestesiada, amarrada na cama, mesmo sob protestos, submetida a episiotomia, separada da filha, largada por várias horas em uma sala sem o marido e sem informações. Seu bebê não resistiu e faleceu por causas obscuras. Ana Paula denunciou o falecimento de sua filha ao Ministério da Saúde pedindo uma investigação e em paralelo denunciou a equipe, convênio médico e o hospital que a atenderam ao CRM de Belo Horizonte. Diante do silêncio do Conselho, que abriu uma sindicância em novembro de 2012 e não forneceu mais informações, a advogada de Ana Paula, Gabriella Sallit, entrou com uma ação na justiça.

“O processo da Ana Paula foi o primeiro que trata a violência obstetrica nestes termos. Não é um processo contra erro médico, ou pelo fim de uma conduta médica. É sobre o procedimento, a violência no tratar. É um marco porque é o primeiro no Brasil” explica a advogada. “É uma ação de indenização por dano moral que lida com atos notoriamente reconhecidos como violência obstétrica. Tudo isso tem respaldo na nossa legislação”, diz.

Para prevenir a violência no parto, infelizmente comum, a advogada aconselha que as mulheres escrevam uma carta de intenções com os procedimentos que aceitam e não aceitam durante a internação. “Faça a equipe assinar assim que chegar ao hospital. E antes de sair do hospital, requisite seu prontuário e o do bebê. É um direito que muitas mulheres desconhecem. Isso é mais importante do que a mala da maternidade, fraldas e roupas. Estamos falando de algo que pode te marcar para o resto da vida”.

(Gráfico – Reprodução)

Direitos legais desrespeitados nas maternidades

Além do nosso código penal e dos vários tratados internacionais que regulam de forma geral os direitos humanos e direitos das mulheres em especial, a portaria 569 de 2000 do Ministério da Saúde, que institui o Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento do SUS,  diz: “toda gestante tem direito a acesso a atendimento digno e de qualidade no decorrer da gestação, parto e puerpério” e “toda gestante tem direito à assistência ao parto e ao puerpério e que esta seja realizada de forma humanizada e segura” e a LEI Nº 11.108, DE 7 DE ABRIL DE 2005 garante às parturientes o direito à presença de acompanhante durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato nos hospitais do SUS.

Mas dificilmente essas normas são seguidas, como explica a pesquisadora Simone Diniz (leia entrevista na íntegra), formada em Medicina Preventiva pela Universidade de São Paulo, que participou da pesquisa “Nascer no Brasil: Inquérito Nacional sobre Parto e Nascimento”, grande e minucioso panorama realizado pela Fiocruz em parceria com o Ministério da Saúde  – ainda sem data para lançamento.

“O parto é muito medicalizado e muito marcado pela hierarquia social da mulher no Brasil. Para algumas questões de saúde, como para quem tem HIV, precisa de um antiretroviral ou de uma cirurgia, você tem o mesmo procedimento público e privado, existe um padrão do que é considerado como aceitável. Para o parto não. A assistência ao parto para as mulheres de menor renda e escolaridade e para aquelas que o IBGE chama de pardas e negras, é muito diferente das mulheres escolarizadas, que estão no setor privado, pagantes. 

Normalmente as mulheres de renda mais baixa têm uma assistência que não dá nenhum direito a escolha sobre procedimentos. Os serviços atendem essas mulheres para um parto vaginal com várias intervenções que não correspondem ao padrão ouro da assistência, como ficar sem acompanhante e serem submetidas a procedimentos invasivos que não deveriam ser usados a não ser com extrema cautela, como o descolamento das membranas, que é muito agressivo, doloroso, aumenta o risco de lesão de colo e infecções, a ruptura da bolsa, como aceleração do parto. É uma ideia de produtividade que parte do pressuposto que o parto é um evento desagrádavel, degradante, humilhante, repulsivo, sujo e que portanto aquilo deve ser encurtado. No setor público é pior, mas é preciso levar em conta que no setor privado, 70% das mulheres nem entra em trabalho de parto, vão direto para cesarianas eletivas”.

Cesariana desnecessária: 

mais uma violência contra a mulher

A imposição de uma cesariana desnecessária também tem sido vista pelos pesquisadores e pelas próprias mulheres como uma forma de violência porque além de um procedimento invasivo, oferece mais riscos a curto e longo prazo para a mãe e o bebê. “Hoje nós sabemos que existe muito mais segurança nos partos fisiológicos do que nas cesáreas. Não tenha dúvidas de que elas são um recurso importante que salva vidas quando realmente necessárias. Mas no parto fisiológico o bebê tem menor chance de ir para uma UTI neonatal, de ter problemas respiratórios, metabólicos, infecções, tem o melhor prognóstico de todos” explica Simone Diniz. “O bebê nasce estéril e a medida que ele entra em contato com as bactérias da vagina durante o parto, é colonizado por elas e isso fará com que ele desenvolva um sistema imune muito mais saudável do que se nascer de cesárea e for contaminado por bactérias hospitalares. Esse é conhecimento recente, mas já saíram pesquisas sobre risco diferenciado de asma, diabete, obesidade e uma série de doenças crônicas”.

(Gráfico – Reprodução)

Apesar do índice máximo de cesarianas aconselhado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) ser o de 15%, o Brasil lidera o ranking na América Latina, segundo a Unicef, com mais de 50% de nascimentos através da cirurgia. O índice sobe consideravelmente quando se olha apenas para os hospitais particulares. Em 2010, 81,83% das crianças que nasceram via convênios médicos, vieram ao mundo por cesarianas. Em 2011, o número aumentou para 83,8%, segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Há ainda hospitais particulares como o Santa Joana, em São Paulo, que no primeiro trimestre de 2009 apresentou taxa de 93,18% cesarianas, segundo o Sistema de Informações de Nascidos Vivos (SINASC). Questionada a respeito, a ANS declarou por meio de assessoria de imprensa que “vem trabalhando, desde 2005, para a diminuição do número de partos cesáreos, mas o problema é bastante complexo e multifatorial, envolvendo a organização do trabalho do médico, dos hospitais e a própria cultura e informação da população brasileira”. Disse ainda que “não existe limite para a realização de partos cesáreos” e que isso depende da indicação médica.

(Gráfico – Reprodução)

No filme “O Renascimento do Parto”, ainda sem data de estreia no Brasil, mas que já possui uma versão resumida no Youtube, o pediatra Ricardo Chaves questiona: “Eu quero saber o seguinte: nós combinamos com o bebê que ele vai nascer sexta-feira, quatro da tarde? Ele respondeu que tem condição de nascer?”

(Gráfico – Reprodução)

Nos consultórios, a prática é assustar a mulher

Os profissionais têm opiniões diferentes a respeito do grande volume de cesarianas. Para a médica obstetra representante do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) Silvana Morandini, “a medicina defensiva está indicando mais a cesárea. Se o bebê tem circular de cordão no pescoço, se é um feto muito grande, se tem placenta marginal, qualquer diagnóstico que possa dar problema, aumenta a prescrição”. Ela chama isso de “conduta defensiva”, por “medo de dar errado”. Silvana também acredita que “o grande número de cesáreas é cultural. A mulher brasileira tem a ideia de que com o parto vaginal vai ficar com o perineo mais flácido”.

Já o obstetra especialista em parto humanizado Jorge Kuhn acredita que “a grande culpada pelo boom de cesarianas foi a mudança do modelo obstétrico. Antigamente o modelo era centrado na obstetriz. O médico era chamado nos casos de complicação. A transformação do parto domiciliar em hospitalar, na década de 1970, aumentou a incidência de cesarianas. É lógico que esse índice também cresceu por outras razões, como gravidez múltipla, idade avançada e riscos reais ”. Ele explica que outro fator importante foi a entrada dos convênios médicos nos planos de parto. “Eles perceberam que para vender planos de saúde, um bom argumento era o de que a mulher faria o pré-natal com o mesmo médico que faria o parto e isso é a maior cilada. Porque o médico prefere ficar no consultório a sair para ganhar tão pouco. Dizem que a mulher escolhe a cesariana, mas o parto normal é desconstruído no consultório consulta a consulta. Frases como ‘nossa, mas esse bebê está crescendo muito’ dão a conotação subliminar de que a mulher não poderá ter parto normal. Circular de cordão, bacia estreita, feto grande, feto pequeno, pouco líquido, muito líquido, pressão arterial alta, diabetes, nada disso é indicação de cesariana.

Foi se criando o conceito de que o corpo da mulher é defeituoso 
e requer assistência. 
 Que ela precisa ser cortada em cima ou embaixo para poder parir”.


Um médico obstetra com 15 anos de formação, que atende a convênios e preferiu ter sua identidade preservada, confirma a fala de Jorge Kuhn.
Ele explica que com o valor irrisório pago pelos convênios (cerca de 300 reais por parto normal ou cesárea) não compensa para o profissional largar o consultório cheio ou sair de casa de madrugada para passar 10, 12 horas acompanhando um parto normal. “Eu digo para as minhas pacientes logo nas primeiras consultas que se elas optarem por marcar uma cesariana eu farei, mas se optarem por um parto normal vão ter com plantonista”.

Para ele, apesar das pesquisas e das indicações internacionais como a da OMS, a cesariana é a melhor opção para a mãe e o bebê. “No hospital particular eu acho que acontece o real parto humanizado. Porque tem uma assistência muito maior. Com 5 para 6 cm de dilatação a gente instala a anestesia, aí a paciente já não sente dor, faz a tricotomia (raspagem dos pêlos) porque é mais higiênico, rompe a bolsa, acelera o trabalho de parto. Minha filha nasceu por cesárea, minhas sobrinhas também. Se eu achasse tão bom o parto normal teria feito. Claro que se o médico marcar a cirurgia para muito antes, o bebê pode nascer prematuro, com problemas respiratórios, pode complicar sua saúde a longo prazo. Mas no parto normal existe mais risco de asfixia e paralisia cerebral. Se você for perguntar, 90% dos filhos de médicos nascem por cesárea”.

Jorge Kuhn, que foi recentemente denunciado pelo Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro e responde a processo no CREMESP por ter declarado em um programa de televisão ser favorável ao parto domiciliar para gestantes de baixo risco, lembra que para o hospital também é muito mais lucrativo e conveniente que se façam cesarianas. “Eles sabem quais são os recursos humanos e materiais que têm em vésperas de feriados, principalmente os mais prolongados, e têm os agendamentos da sala certinhos. Fazer uma cesariana em trabalho de parto resulta em maior custo para o hospital. Quando a mulher ficou tantas horas em trabalho de parto e passa para uma cesárea, isso é um problema. Uma vez eu perguntei para um gestor quanto eu custava, fazendo mais partos normais. Ele disse que o problema é quando meus partos normais viravam cesareas, porque já tinha gasto tempo e material naquele parto e gastava com a cirurgia. Mas tanto faz em termos de custo. O agendamento que facilita. Nenhum hospital no Brasil tem condições de atender partos normais como a OMS aceita, com no máximo 15% de cesarianas. Não têm estrutura física para isso, é uma formula difícil de fechar. Mas basicamente é uma tríade: comodidade dos médicos e hospitais, indiferença das mulheres e mercado. Sempre é uma questão de dinheiro”.

Ana Cristina acrescenta que quanto mais complicado for o parto, mais lucro o hospital terá. “anestesia, cirurgia, drogas, antibioticos, compressas, equipamento, equipe de enfermagem. Se rolar uma UTI neonatal por dois dias, já vai mais uma boa grana, quase a de um parto. E esses equipamentos todos da UTI estão pagos, precisam ser usados para gerar lucro. A UTI custa muito caro. Então qual é o problema? É que nós estamos colocando bebês para nascer em uma estrutura muito cara, que precisa se pagar”.

Para incrementar, alguns hospitais particulares oferecem alguns “extras” a seus pacientes, conta Simone Diniz. “Existe uma coisa chamada ‘janela de plasma’, que fica no centro cirúrgico e dá para um pequeno auditório anexo. É uma janela opaca que fica transparente quando o bebê nasce e o médico pode apresentá-lo à plateia. Algumas famílias fazem festas, com serviço de catering etc. Isso não pode acontecer em um parto normal, certo? Precisa ser agendado com antecedência. Aí você vê como hoje o parto fisiológico é subversivo, porque subverte toda essa lógica hospitalocêntrica”.

 

Alternativa subversiva

O modelo alternativo, hoje conhecido como parto humanizado, se baseia em exemplos usados há muitos anos em países como Holanda e Alemanha, e é centrado na autonomia da mulher, pensando o parto como algo fisiológico, natural, com pouca ou nenhuma intervenção médica. O direito da mulher sobre o seu próprio parto também é uma das principais bandeiras de um movimento feminino que cresce a cada dia no Brasil, principalmente através de blogs e articulações por redes sociais.

No filme inglês Freedom For Birth, que conta a história da parteira húngara Ágnes Geréb, processada criminalmente e condenada a dois anos de prisão porque, até 2011, não havia regulamentação para os profissionais que assistiam partos domiciliares, a antropóloga americana Robbie Davis-Floyd critica o modelo atual, em que o corpo da mulher é tratado como uma máquina, e o parto como um processo mecânico disfuncional, que precisa das intervenções médicas para trazer o bebê ao mundo porque não confia na fisiologia natural do parto. Em seu estudo “Birth as an American rite of passage (1984)” ela lembra que o parto, até pouco tempo, era vivido como algo exclusivamente feminino e privado, com as mulheres dando a luz em suas casas amparadas por outras mulheres: parteiras, mães, amigas mais experientes.

A ideia de “mulher empoderada”, 
que escolhe onde, como e com quem quer parir, 
ou no mínimo opina a quais procedimentos quer ou não se submeter 
é o centro deste pensamento.

O parto humanizado pode acontecer em casas de parto, em casa (somente para gestantes de baixo risco) e até em salas especiais que muitos hospitais estão criando com esta finalidade. A equipe geralmente é reduzida, com uma enfermeira obstetra (ou médico que siga esta filosofia), um neonatologista e uma doula – profissional treinada a dar suporte físico e emocional à mulher desde o pré-natal. Na hora do parto, a doula orienta sobre exercícios e posições, respiração e fornece um arsenal de recursos não farmacológicos para alívio dor, como massagens, bolas, óleos, exercícios e banhos. A mulher pode comer, tomar água, andar e ficar na posição que se sentir mais a vontade para parir.

Cada vez mais mulheres têm optado por este modelo, mas nem todas têm acesso. Um parto domiciliar custa de 5 a 10 mil reais (somando os honorários de todos os profissionais). No hospital, além da equipe, é preciso pagar a internação em pacotes de parto, que podem custar em média mais 8 mil reais.


Apesar de em 2011 o governo federal ter lançado a Rede Cegonha, que tem como objetivo humanizar o parto e criar casas de parto normal integradas ao SUS, ainda há poucas opções e somente em grandes centros urbanos – até 2014, segundo o Ministério da Saúde, serão 200 em todo o país. Com pouca ou nenhuma divulgação, sobram leitos em muitas delas. 

A Casa de Parto de Sapopemba em São Paulo, por exemplo, referência no atendimento a gestantes de baixo risco, não só não é divulgada, como não se consegue entrevistar os profissionais que atendem na Casa. Alertada por colegas jornalistas, eu tentei entrar em contato através da assessoria de imprensa da prefeitura mas não obtive resposta, apesar da insistência. Durante a reportagem, conheci uma enfermeira obstétrica que foi demitida por ter concedido entrevista a um jornal sem autorização. Uma reserva que faz lembrar o que acontece com os programas de redução de danos – cala-se a respeito para evitar polêmica, ou a adesão excessiva em relação às dimensões previstas por essas políticas públicas.

Simone Diniz conta que a própria mulher que resolve esperar o trabalho de parto é hostilizada. “As pesquisas indicam que entrar em trabalho de parto aumentam muito o risco de você sofrer violência. É muito interessante o grau de hostilização da mulher em trabalho de parto. No setor privado, acham o fim da picada que aquela mulher queira dar trabalho para eles. Uma mulher contou que como insistiu muito com o médico que queria parto normal, ele indicou um psicólogo dizendo que ela tinha traços masoquistas!” 

O Conselho Federal de Medicina é totalmente contra o parto domiciliar. Assim como os conselhos regionais que quiseram caçar o registro de Jorge Kuhn. O Conselho de Enfermagem (COFEN) também tentou por muito tempo fechar o novo curso de obstetricia da USP Leste, mas desde dezembro de 2012, o curso ganhou, através de liminar do Ministério Público, não só o direito ao funcionamento como ao registro específico no COFEN.

Por mim você pode cortar a mulher em quatro…

Essa “caça às bruxas do parto humanizado” não é exclusividade brasileira – vide Àgner Gereb. Jorge Kuhn conta que quando chegou ao Brasil após uma temporada aprendendo sobre parto humanizado na Alemanha, foi procurar os gestores de grandes hospitais para implantar essas técnicas de redução de cesarianas, mas que foi recebido com declarações como

“por mim você pode cortar a mulher em quatro 
desde que me entregue um bebê bom”. 

Ainda assim, o obstetra é otimista: “O filósofo Schopenhauer dizia que toda verdade passa por três estágios: No primeiro, ela é ridicularizada. No segundo, é rejeitada com violência. No terceiro, é aceita como evidente por si própria. Estamos no segundo estágio”.

Outra alternativa bonita para quem procura por um parto “empoderado” (no sentido de dar poder à mulher sobre o parto) é a Casa Ângela, em São Paulo. Criada pela Associação Comunitária Monte Azul, a Casa de Parto, instalada na periferia da zona sul da cidade, se mantém com financiamentos de parceiros nacionais e internacionais e, desde o começo de 2012, faz uma média de 10 partos por mês, e acompanha mais de 250 mães e bebês. O nome homenageia a parteira alemã Ângela Gehrke, que nas décadas de 1980 e 1990, atendeu a mais de 1500 mulheres da favela Monte Azul e foi referência de parto humanizado no Brasil. Ângela morreu de um câncer em 2001 mas o trabalho com a comunidade foi retomado alguns anos depois.

A casa é linda, iluminada, arejada e no dia que visitei, um cheiro de bolo assando perfumava o ambiente. Nada ali lembrava o ambiente hospitalar. Anke Riedel, obstetra coordenadora do projeto, me conta que por causa da grande procura de mulheres de outras regiões e até outras cidades, a casa criou um plano de sobrevivência, no qual cobra um pequeno valor para quem não é da comunidade. O pacote padrão, que inclui o pré-natal, a triagem para fatores de risco no parto (as regras são rígidas e somente as gestantes que não apresentam riscos podem ser atendidas na casa), o parto e o acompanhamento do puerpério e do bebê por um pediatra, custa 3.500 reais, que pode ser negociado conforme as condições financeiras do casal. “Como não recebemos qualquer ajuda do governo, essa foi a forma que encontramos de manter a casa e poder atender às gestantes, além do apoio dos parceiros”. Na equipe, obstetrizes atendem às gestantes e, em casos de urgência, a casa possui equipamento e ambulância próprios para remoções para hospitais próximos. Segundo Anke, algumas vezes estas remoções acontecem, mas nunca houve uma de urgência.

 

Em vez de maca e soro, uma leoa com o bebê nos braços

Fui convidada a conhecer Aline, de 26 anos e seu marido Marcos, da mesma idade, moradores da comunidade que tiveram seu bebê na casa na noite anterior. Quando entrei no quarto, a primeira surpresa. Nada de maca ou soro. Apenas um casal deitado em uma cama com o bebê nos braços, com luz baixa e largos sorrisos no rosto. Aline me mostrou a pequena Sofia, que veio ao mundo sem qualquer intervenção médica ou farmacológica. Ela conta que o bebê nasceu na banheira, à luz de velas e música ambiente, com o marido fazendo massagem e ajudando nas posições. Que se apaixonou pela Casa assim que conheceu a proposta e que durante o pré-natal, ela foi bem orientada e tratada pelo nome, ao contrário do atendimento no posto de saúde em que era uma “mãezinha”.

Um nó aperta minha garganta, é impossível não fazer comparações. Marcos diz que estava orgulhoso da mulher, que mais parecia uma leoa poderosa no parto. Compara ao que já tinha visto na televisão ou nas novelas: “Aquelas mulheres gritando, deitadas, aquele desespero. Nada disso aconteceu. Teve hora que a enfermeira abraçava, dava beijo na testa dela, esse afeto fez diferença. No hospital você fica vendo seu parto acontecer.” Flashes do meu parto não param de vir à mente. Sou feliz por Aline e Marcos. E muito revoltada por mim mesma.

Vendo e ouvindo essas histórias de amor, assistindo a vídeos de partos humanizados, dignos, nos quais as mulheres foram protagonistas do nascimento dos seus filhos, só posso chegar a uma conclusão: Violaram meu momento. Roubaram meu parto de mim.

* Infográficos de Emídio Pedro
Mapa da Violência obstétrica: denúncias pela internet
Depois de um parto traumático e extremamente violento e um segundo humanizado, empoderado e em casa, Isabella Rusconi e Carlos Pedro Sant’Ana criaram o Mapa da Violência Obstétrica. A ferramenta é inédita no Brasil e permite ao internauta denunciar onde e quais tipos de violência obstétrica sofreu. “Acredito que um dos melhores modos de ter uma leitura real de um problema é mapeando situações, dando uma leitura gráfica do problema para facilitar a sua compreensão” explica Carlos. “Embora seja um problema invisível para muita gente —principalmente para os homens— e silenciado por muitas mulheres —por vergonha ou por desconhecimento de que foi vitima— é necessário mostrar que é uma realidade agressiva no Brasil e mostrar que existem alternativas, que é necessário criar um novo sentido de respeito humano e mudar o modo como lidamos com o parto. Talvez mostrando relatos de vitimas da violência obstétrica, possamos chegar a outras mulheres que passaram por essa violência sem o saber ou sem o reconhecer, e as arrancar de sua Sindrome de Estocolmo”…

https://violenciaobstetrica.crowdmap.com/
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