sexta-feira, 14 de junho de 2024

Casos de estupro aumentam 8,2% no Brasil em 2022

 Anuário de Segurança Pública informa que vítimas são quase 75 mil

 

Publicado em 20/07/2023 - 18:06 Por Flávia Albuquerque – Repórter da Agência Brasil - São Paulo

Os casos de estupro e estupro de vulnerável notificados no ano passado às autoridades policiais chegaram a 74.930, o que representa 36,9 em cada grupo de 100 mil habitantes. O número é 8,2% maior do que o registrado em 2021, de acordo com os dados divulgados nesta quinta-feira (20), no Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Os casos de estupro somaram 18.110 vítimas em 2022, crescimento de 7% em relação ao ano anterior, e os de estupro de vulnerável,  56.820 vítimas, 8,6% a mais do que no ano anterior.


Segundo os dados, 

24,2% das vítimas eram homens e mulheres com mais de 14 anos, 

e 75,8% não eram capazes de consentir, fosse pela idade (menores de 14 anos), 

ou por qualquer outro motivo (deficiência, enfermidade etc.). 

Apenas 8,5% dos estupros no Brasil são reportados às polícias e 

4,2% pelos sistemas de informação da saúde. 

Assim, conforme a estimativa, o patamar de casos de estupro no Brasil é de 822 mil casos anuais.


A pesquisa revela que as crianças e adolescentes continuam sendo as maiores vítimas da violência sexual: 

10,4% das vítimas de estupro eram bebês e crianças com idade até 4 anos; 

17,7% das vítimas tinham entre 5 e 9 anos e 

33,2% entre 10 e 13 anos. 

Ou seja, 61,4% tinham no máximo 13 anos. 

Aproximadamente 8 em cada 10 vítimas de violência sexual eram menores de idade. 

Pela legislação brasileira, uma pessoa só passa a ser capaz de consentir a partir dos 14 anos.


De acordo com o anuário, no ano passado, 88,7% das vítimas eram do sexo feminino e 11,3%, do masculino; 56,8% eram pretas ou pardas (no ano anterior. eram 52,2%); 42,3%, brancas; 0,5%, indígenas; e 0,4%, amarelas.


“Embora não tenhamos pesquisas sobre o tema no Brasil, é comum ouvir relatos de profissionais de educação, ou mesmo de policiais, que indicam que foi o professor ou a professora que notou diferenças no comportamento da criança e primeiro soube do abuso. Assim, a escola tem papel fundamental para identificar episódios de violência, mas, principalmente, em fornecer o conhecimento necessário para que as crianças entendam sobre abuso sexual e sejam capazes de se proteger”, diz o anuário.


Ainda segundo o anuário, é comum a criança não ser capaz de reconhecer o abuso, seja por falta de conhecimento, seja por vínculo com o agressor. “É compreensível que a criança tenha algum sentimento de amor, ou mesmo lealdade, pelo agressor, já que em geral o abuso é praticado por pais, padrastos, avós e outros familiares. Além disso, o abusador tende a manipular a criança com ameaças ou subornos, o que garante o silêncio da vítima. O sentimento de culpa ou vergonha costuma estar presente na criança, que acaba não revelando nada a familiares.”


Conforme os registros 82,7% dos abusadores são conhecidos das vítimas e 17,3%, desconhecidos. Entre as crianças e adolescentes com idade até 13 anos, os principais autores são familiares (64,4% dos casos) e 21,6%, conhecidos da vítima, mas sem relação de parentesco. Entre as vítimas de 14 anos ou mais, chama a atenção que 24,4% dos abusos foram praticados por parceiros ou ex-parceiros íntimos da vítima, 37,9% por familiares e 15% por outros conhecidos. Apenas 22,8% dos estupros de pessoas com mais de 14 anos foram praticados por desconhecidos.


A residência é o local que aparece com mais frequência, já que em média, 68,3% dos casos somados de estupro e estupro de vulnerável ocorreram na casa da vítima. A proporção dos estupros de vulnerável que ocorrem em casa é de 71,6% e nos estupros, de 57,8%. A via pública foi o local apontado em 17,4% dos registros de estupro e em 6,8% dos de vulnerável. A maioria dos casos de violência sexual (53,3%) ocorre à noite ou na madrugada (entre 18h e 5h59). Quanto às ocorrências de estupro de vulnerável, que atingem principalmente crianças, a maioria (65,1%) foi ao longo do dia, entre 6h e 11h59, ou entre o meio-dia e as 17h59, período em que a mãe ou cuidadora em geral está fora.


Segundo Juliana Brandão, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o número de casos de estupros é o maior desde que a instituição começou a acompanhar tais ocorrências, e é difícil atribuir o aumento a um único fator, principalmente porque é um crime extremamente complexo, que tem suas especificidades. “Neste caso, estamos falando de crianças com até 13 anos, consideradas vulneráveis. Esse aumento dos números é apenas o aumento das notificações, porque o crime de estupro por si só já é um crime que, pela natureza que carrega, já tem muita subnotificação. Quando estamos olhando para esse universo mais de crianças e adolescentes, é mais difícil ainda imaginar que crianças e adolescentes foram responsáveis por notificar a grande violência que sofreram”, afirmou.


Para Juliana, é possível que esse resultado seja fruto de um conjunto de fatores que pode ser explicado, em parte, pelo maior empoderamento das vítimas, mas não se pode esquecer de analisar que há pessoas que estão sendo os vetores dessa comunicação oficial para as autoridades, os adultos. “E são esses adultos que conseguiram, de alguma forma, funcionar fazendo essa mediação, ouvindo o relato das crianças e adolescentes e levando para a polícia para que o registro fosse efetivado”, acrescentou.


Edição: Nádia Franco


Um estupro a cada 8 minutos é registrado no Brasil

 de Instituto Patricia Galvão  em 2019


O Brasil segue com números alarmantes de violência de gênero. Em 2019, foram registrados 66.123 boletins de ocorrência de estupro e estupro de vulnerável nas delegacias de polícia do país – uma média de um estupro a cada 8 minutos. Os dados do 14° Anuário Brasileiro de Segurança Pública revelam que as mulheres continuam sendo as principais vítimas do crime, com 56.667 dos registros,(85,7%), o que equivale a um crime sexual a cada 10 minutos.

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública alerta para a imensa subnotificação que cerca o fenômeno da violência sexual no país, fruto do medo, sentimento de culpa e vergonha com que convivem as vítimas, e até mesmo o desestímulo por parte das autoridades.


Crimes sexuais em 2019




Fonte - 14° Anuário Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2020)




Brasil tem cerca de 822 mil casos de estupro a cada ano, dois por minuto

Pesquisa do Ipea aponta que apenas 8,5% dos crimes são registrados pela polícia e 4,2% pelo sistema de saúde


Publicado em 02/03/2023 - Última modificação em 02/03/2023 às 10h08


Neste começo de março, Mês da Mulher, um estudo publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) chama a atenção para um problema crítico no Brasil e que afeta principalmente as mulheres: o número estimado de casos de estupro no país por ano é de 822 mil, o equivalente a dois por minuto.


Com base nessa estimativa, o Ipea também calculou a taxa de atrito para o país, ou seja, a proporção dos casos estimados de estupro que não são identificados nem pela polícia, nem pelo sistema de saúde. A conclusão é que, dos 822 mil casos por ano, apenas 8,5% chegam ao conhecimento da polícia e 4,2% são identificados pelo sistema de saúde.


O quadro é grave, pois, além da impunidade, muitas das vítimas de estupro ficam desatendidas em termos de saúde, já que, como os autores ressaltam, a violência sexual contra as mulheres frequentemente está associada a depressão, ansiedade, impulsividade, distúrbios alimentares, sexuais e de humor, alteração na qualidade de sono, além de ser um fator de risco para comportamento suicida.


O estudo se baseou em dados da Pesquisa Nacional da Saúde, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (PNS/IBGE), e do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, tendo 2019 como ano de referência. De acordo com o Sinan, a maior quantidade de casos de estupro ocorre entre jovens, com o pico de idade aos 13 anos, conforme o gráfico abaixo:


 Estupros de acordo com o sinan



Quanto às relações entre agressores e vítimas de estupro, notam-se quatro grupos principais: os parceiros e ex-parceiros, os familiares (sem incluir as relações entre parceiros), os amigos/conhecidos e os desconhecidos.


Neste cenário, a estimativa de 822 mil estupros por ano é, de acordo com os responsáveis pela pesquisa, conservadora. Pesquisador do Ipea e um dos autores do estudo, Daniel Cerqueira afirmou que faltam pesquisas especializadas sobre violência sexual abrangendo o universo da população brasileira. Segundo ele, uma limitação das análises é que elas se fundamentam inteiramente numa base de registros administrativos (Sinan).


“O registro depende, em boa parte dos casos, da decisão da vítima, ou de sua família, por buscar ajuda no Sistema Único de Saúde”, explicou. Dessa forma, o número de casos notificados difere substancialmente da prevalência real, pois muitas vítimas terminam por não se apresentar a nenhum órgão público para registrar o crime, seja por vergonha, sentimento de culpa, ou outros fatores.


Acesse a íntegra do estudo


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Temas: DESENVOLVIMENTO SOCIAL , SAÚDE

Tags: VIOLÊNCIA

Número de estupros aumenta 14,9% no Brasil, com 34 mil em seis meses

 Fórum de segurança aponta que houve 1 caso a cada 8 minutos


Publicado em 13/11/2023 - 17:41 Por Camila Boehm – Repórter da Agência Brasil - Brasília


A cada 8 minutos, uma menina ou mulher foi estuprada no primeiro semestre deste ano no Brasil, maior número da série iniciada em 2019 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Foram registrados 34 mil estupros e estupros de vulneráveis de meninas e mulheres de janeiro a junho, o que representa aumento de 14,9% em relação ao mesmo período do ano passado.  


Os dados compilados pelo Fórum, divulgados nesta segunda-feira (13), apontam ainda que os feminicídios e homicídios femininos cresceram 2,6% no período, em comparação ao mesmo período de 2022. Foram 722 mulheres vítimas de feminicídio – quando o crime ocorre por razões de gênero. Mais 1.902 foram assassinadas e tiveram os casos registrados como homicídio. A entidade avalia que os números mostram que o estado brasileiro segue falhando na tarefa de proteger suas meninas e mulheres. 


O resultado, segundo o FBSP, está na contramão da tendência nacional dos crimes contra a vida. “Recentemente, o Monitor da Violência, publicação do G1 com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o NEV-USP, mostrou que os crimes contra a vida caíram 3,4% no país no primeiro semestre deste ano. Ou seja, embora o país tenha tido êxito na redução da violência letal no período, os assassinatos de mulheres apresentaram crescimento”, aponta o relatório divulgado hoje. 


Para Isabela Sobral, supervisora do núcleo de dados do FBSP, a Lei Maria da Penha é um mecanismo importante para prevenir o assassinato de mulheres. “A lei coloca o instrumento da medida protetiva de urgência, que é fundamental para prevenir a violência contra a mulher e o feminicídio. É importante que essa ferramenta seja de fato utilizada. Em diversos estados, existem estudos que mostram que as mulheres que são vítimas de feminicídio, em sua maioria, não possuíam medida protetiva de urgência contra o seu agressor”, disse. 


“Isso tem que ser feito pelo fortalecimento da rede de atendimento, que vai acolher essa mulher em situação de violência, oferecer opções para ela que muitas vezes ela não tem ou sente que não tem. A gente precisa capacitar as polícias para fazer um atendimento adequado dessa mulher. É muito importante que elas estejam capacitadas para fazer isso da forma adequada e apresentar esses instrumentos, como a medida protetiva de urgência, que são fundamentais para a proteção dessa mulher”, acrescentou. 


Isabela Sobral ressalta ainda a necessidade de que os policiais estejam capacitados para investigar e identificar casos de feminicídio entre os homicídios adequadamente, já que há diferença considerável na classificação do crime entre os estados. 


“A respeito dos feminicídios, essa classificação depende de uma interpretação da autoridade policial, já que estamos falando de registros policiais nesse levantamento. Quem faz essa classificação é o delegado nesse primeiro momento e, após a investigação. Tem estados que têm percentuais acima de 70% de feminicídios registrados em relação ao total de homicídios de mulheres e outros estados um percentual de apenas 20%”, apontou. 


Subnotificação

Os dados de violência compilados correspondem aos registros de boletins de ocorrência em delegacias de Polícia Civil de todo o país. Como há subnotificação de casos de violência sexual, os números de estupro podem ser ainda maiores. 


“Cabe ressaltar que os estupros são um tipo de crime geralmente, tipicamente, muito subnotificados por motivos diversos, seja porque a mulher tem medo de registrar ou porque não compreende que aquilo pelo que passou se tratou de um estupro ou porque se trata de uma criança ou uma pessoa vulnerável que não consegue identificar ou que tem medo, não consegue falar, confia naquele autor”, disse Sobral. 


Estudo recente do Ipea sobre a prevalência de estupro no Brasil, com dados de 2019, estimou que apenas 8,5% dos estupros que ocorrem no país são registrados pelas polícias e 4,2% pelos sistemas de informação da saúde. “Se assumirmos este mesmo percentual de casos notificados para este ano, temos cerca de 425 mil meninas e mulheres que sofreram violência sexual nos primeiros seis meses de 2023”, apontou o relatório do FBSP. 


A supervisora do núcleo de dados do FBSP acrescenta que a maior parte dos autores de estupros são pessoas conhecidas das vítimas e que a maior parte também dessas vítimas são vulneráveis. Em relação a tipificação nos boletins de ocorrência, 74,5% dos casos de estupro registrados no primeiro semestre do ano foram de estupro de vulnerável. Isso significa que as vítimas tinham menos de 14 anos ou eram incapazes de consentir, seja por enfermidade, deficiência mental ou qualquer outra causa que não pode oferecer resistência.


Edição: Aline Leal


Mil reais para estuprar meninas virgens de 12 e 13 anos: empresário é preso

 da revista Forum - 14 de junho de 2024


Sujeito de 61 anos é acusado de ter aliciado e abusado de dezenas de adolescentes; pena pode ultrapassar 100 anos

Foi preso na manhã desta sexta-feira (14), na região administrativa de Itapoã, entorno do Distrito Federal, um empresário de 61 anos que pagava até R$ 1 mil para estuprar meninas virgens. Ele não teve, até o momento, seu nome divulgado.

A Polícia Civil do Distrito Federal (PC-DF) cumpriu os mandados de prisão e busca e apreensão na casa do suspeito. Ele é investigado por estupro de vulnerável e exploração sexual de adolescentes. A prisão é resultado da investigação da equipe da Delegacia Especial de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA).


Abusada desde os 13 anos

O sujeito pagava para estuprar meninas virgens. Segundo a polícia, as vitimas mais velhas tinham a incumbência de aliciar as mais novas. Uma das meninas, atualmente com 16 anos, era vítima dos abusos desde os 13. A polícia afirma ainda que ele aliciou dezenas de adolescentes entre 12 e 13 anos. Além de pagar, ele também distribuía presentes e fazia festas para as meninas.

O sujeito teve a prisão temporária decretada por 30 dias. Depois do prazo, a Justiça deverá definir se converte a prisão dele em preventiva até o fim das investigações.

Caso os crimes sejam, de fato, comprovados, a pena do empresário pode ultrapassar 100 anos de prisão, por conta do grande número de vítimas que ele fez nos últimos anos.


segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Rita Segato: “Temos que mostrar aos homens que expressar poder através da violência é um sinal de fraqueza”

de El Salto

PUBLICADO 2019-10-26 06:00



Rita Laura Segato é uma escritora feminista argentina, antropóloga e ativista feminista que fala de feminismos e machismos.

Ele me convida para tomar um sorvete enquanto visitamos o Santander. Ele nos diz que um sinal para distinguir um bom sorvete é que ele derrete rapidamente: terá menos água e conservantes e será mais cremoso. Tudo nela está próximo. Seu sotaque, seu olhar e suas palavras. Meu colega Sergio faz uma rota pela cidade e conta sobre o incêndio que a devastou. Além disso, a partir daí, a especulação e os interesses de classe moldaram o espaço ao seu gosto. Ela é sempre curiosa, responde a tudo com surpresa e ouve com atenção.
Rita Segato (Buenos Aires, 1951) veio à cidade para ministrar um curso sobre Discriminação e Violência na Universidade Menéndez Pelayo. Eu participei do curso com desejo. Suas aulas sempre fervem com idéias, conceitos e imagens que voam de um lado para o outro. Como um bom antropólogo, você tem exemplos para tudo. Cultos de posse, rituais de iniciação, mitos clássicos, arte, política, guerra. Suas idéias são fortes e atingidas com força.
Você afirma que seu trabalho deve ser entendido como um estudo sobre masculinidade. Nesses estudos, o estupro sempre foi uma questão central. Qual é a relação entre masculinidade e estupro?
Eu acredito que o estupro esconde um fator fundamental da ordem patriarcal predominante. Você precisa entender que o estupro não é um crime como outro qualquer. O estupro se afasta, ao mesmo tempo, daquela imagem do homem como um lobo faminto que viola porque não pode ser controlado, e também da imagem do homem como ladrão, que rouba o sexo da mulher. O estupro não é um crime sexual; é, antes, um crime expressivo, por meios sexuais. Duas coisas são ditas com estupro: um para a mulher e outro para os outros homens.
Uma lição moral é comunicada à mulher: a mulher é suspeita de imoral desde o início dos tempos, e o estupro a castiga por desobediência. Para os outros homens, o estupro comunica potência. Para manter a masculinidade, ela deve ser confirmada pelos interlocutores masculinos e, para isso, precisa ser exibida. O caso de La Manada aparece aqui como o paradigma da interlocução masculina. Através do ato grupal emerge uma estrutura que é a da ordem patriarcal, uma ordem que ordena que uma vítima se sacrifique pela construção da masculinidade de seus agressores. E aqui, no estupro, a masculinidade é frágil porque é estruturada como a exibição violenta de um poder para os olhos de outros homens. É a busca desesperada de afirmação. É muito claro em La Manada isso. É por isso que eles são gravados, por isso eles compartilham o vídeo. É um prazer narcisista masculino, no qual uma irmandade é revelada, na qual os aspirantes a homens precisam receber seu título dos olhos dos outros homens.

Na Espanha, desde o caso de La Manada, houve 135 casos de violações de grupos, 43 somente em 2019. Por que essa epidemia?
Não gosto do termo epidemia para isso. A epidemia é automática e retira a deliberação. Eu prefiro usar o termo mimese. A questão aqui é por que esse efeito mimético do estupro coletivo?
Como o que é revelado na violação é uma estrutura, é muito fácil replicar essa estrutura. O caso de La Manada é replicado porque, embora sejam criticados e condenados, continuam aparecendo como uma demonstração de poder. E esse espetáculo governa a masculinidade, especialmente a dos jovens, que ainda não conseguiram provar sua soberania sobre a vida, sua potência. Esse show em que a confirmação do poder aparece como um partido masculino no estupro coletivo o torna contagioso. É muito fácil replicar mimeticamente quando os estupradores aparecem na mídia como homens poderosos. E nisso a mídia tem muita responsabilidade.

E por que aumenta agora?
O aumento das violações também tem a ver com a precariedade da vida. Se há cada vez mais dificuldades em exibir um poder econômico, moral ou intelectual, uma vez que os donos do mundo são cada vez menos, o homem vive como uma emasculação dessa precariedade: ele não tem como se afirmar. O mandato de masculinidade diz aos homens que eles precisam se apropriar de algo, para serem donos. A precariedade da posição masculina questiona seu poder. E, portanto, só há violência - sexual, física, guerra - para restaurar-se à posição masculina.
Crimes como o estupro coletivo mostram a existência de uma masculinidade progressivamente precária. É urgente que os homens redefinam o que é ser homem, porque, se não, serão pegos por uma onda de violência.

Ao falar sobre o homem, você afirma que a masculinidade é sempre acompanhada de um fator de opacidade para si mesmo. O homem não reflete sua masculinidade. Como isso afeta seu lugar no mundo?
No trabalho que fiz por mais de dez anos com estupradores, entendi que o estupro muitas vezes não é um ato inteligível para o próprio estuprador. O estuprador, na maioria das vezes, não entendia o ato em si. Lá eu entendi que a masculinidade é opaca para si mesma, que geralmente não há reflexão ou lógica que possa ser descrita por trás de muitos atos do homem. O homem age automaticamente para se recuperar dessa posição inferior. Hoje há uma inferiorização de tudo e de todos. O que acontece é que as mulheres não sentem essa inferiorização da mesma maneira que os homens. Os homens precisam reabastecer essa posição e, portanto, sua busca por demonstrar potência. Deve ser demonstrado aos homens que procurar expressar poder através da violência é um sinal de fraqueza. O homem que usa o recurso da violência é um homem frágil. O que você deseja exibir como poder é precisamente impotência.

Essa mensagem, quando eu a comunico, eles a recebem imediatamente, entendem o que estou dizendo muito rapidamente. E isso é porque há intenso sofrimento masculino. É desejável construir masculinidade de outra maneira. Porque nessa busca de poder pela violência, o homem se destrói, se deteriora. Mate, mas também morra. Isso os machuca e eles nunca são felizes.

Que saída os homens têm então?
Penso que a história da masculinidade está agora marcada por homens que percebem e compreendem seu sofrimento. Mas não acho que os homens tenham que vir para salvar as mulheres. São as mulheres que estão ajudando os homens a perceber quanto mal o mandato da masculinidade lhes causa e quanto lhes interessa a construção de novos modelos de masculinidade. Sem modelos de chegada, ou seja, sem modelos fixos e ideais que devemos cumprir, porque esses modelos sempre podem se tornar autoritários. Mas para isso você deve prestar muita atenção aos mais jovens.
Nas escolas secundárias em que estive ultimamente, há muitos meninos que fazem um enorme esforço para não ir na direção do machito. Eles fazem um grande esforço e acho que é onde se pode estabelecer sem esse mandato de masculinidade.

A masculinidade está mudando, mas se alguma mudança abre um processo de crise, essa crise também pode ser capitalizada pela reação. O que você acha da retirada masculina em relação a posições conservadoras?
Eu acho que a reação responde a uma agenda. Muitos homens que se retiram para lá estão sendo capturados por uma agenda reacionária de todos aqueles que percebem que desmantelar o mandato da masculinidade e desfazer a ordem patriarcal corre o risco de todos os poderes caírem no chão.
E aqui parece que o fascismo capitaliza essa retirada. E isso porque, por definição, o voto fascista é um voto característico das pessoas com ressentimento. E existem vários tipos de ressentimento. Há pessoas que sentem que não receberam o devido respeito nem a devida apreciação. O fascismo é uma estratégia. Ao apontar um inimigo comum, ele consegue construir um rebanho maciço de aliados. O fascismo é uma política do inimigo. Todas as políticas de ressentimento, que são mais comuns quando a insatisfação aumenta, buscam um inimigo comum. Migrantes e mulheres, nesse sentido, são um alvo fácil. O novo fundamentalismo vê as mulheres novamente como na era das bruxas. E isso faz ressurgir um patriarcado político, que é uma ordem que será posteriormente revestida com discurso religioso, discurso moral, etc. Mas que o fundo é uma ordem política de dominação. O patriarcado funciona de acordo com a ordem dos proprietários. O patriarcado que diz que a mulher deve ser subjugada e demonizada.

Então, o feminismo aponta para o verdadeiro coração da estrutura patriarcal que sustenta a ordem das coisas?
Claro! E esse poder sabe! O poder entende que o feminismo que não tende ao poder pode desestabilizar tudo. É por isso que devemos ter cuidado com um certo feminismo que é patriarcal, é um feminismo que tende ao poder.

Você quer dizer feminismo liberal?Sim, mas não sozinho. Também para alguns feminismos radicais. O feminismo tende a dissolver o poder porque o distribui. O feminismo busca um mundo a ser vinculado, onde a reciprocidade é um dos valores fundamentais. Mas existe a vontade de alguns grupos de que exista uma verdade feminista única e de que os outros sejam suprimidos. A tentativa de avançar é muito feia. Porque uma das características da praticidade feminista é que ela é pragmática, não vertical e com princípios. A política feminina é um trabalho árduo, mas não vai para lá. Assim, vemos que existem grupos que se autodenominam feministas, mas que se comportam de maneira patriarcal, tentando tomar o poder em um sentido patriarcal.
É por isso que acredito no "Let it be" dos Beatles, deixe o tempo agir sobre nós. Abandonar a visão utópica que define o caminho que devemos percorrer, porque tem um objetivo claro. Essa visão tende ao autoritarismo.

Na Espanha, esse debate que confronta vários feminismos enfoca o papel das mulheres trans, profissionais do sexo e mulheres racializadas. O que você acha disso?
No final, está o debate sobre se mulheres que têm outros corpos podem ou não estar na manifestação do movimento. Isso na Argentina afetou bastante o movimento Ni One Less. Quase ameaçando quebrá-lo. A presença de que não pode haver outro corpo senão o de uma mulher. Eu recebo o "Deixe estar" novamente. Você tem que deixar acontecer, você tem que deixar acontecer. Não podemos impedir os males que podem ocorrer se outros corpos aparecerem ao lado do feminismo. Por que evitá-lo agora? Nós vemos o que acontece, vemos o que acontece. Não devemos esquecer a diferença entre o movimento Me Too e o movimento Ni one na Argentina. Eles não têm nada a ver um com o outro. O Me Too é muito menor, muito mais circunstancial e tem outra estrutura, e se refere à história de outra nação. O Eu também se dirige ao Estado, Ninguém vai para a própria sociedade. Ele não pede nada ao Estado, ele reflete sobre o período de mudança na sociedade. Algo totalmente diferente.
O Me Too vem do feminismo americano. Um feminismo que, com algumas raras exceções, chamo o feminismo de " peregrino " (peregrino), o feminismo dos peregrinos puritanos fundadores. É um feminismo puritano! Por exemplo, meus filhos foram para uma escola nos Estados Unidos e essa escola não tinha PDA nas paredes “ Não há demonstrações públicas de afeto”, Você não mostra afeto público… nunca quero isso na minha vida. E então você tem que ter muito cuidado com o padrão puritano. Há um erro muito grande que está acontecendo em alguns feminismos: é necessário que nossas meninas e meninos possam negociar seu desejo cara a cara, corpo a corpo. Entregar ao Estado ou a outros a negociação do nosso desejo é um erro muito sério ... Posso dizer "eu gosto de você", você pode me dizer "eu gosto de você", vamos negociar sem ofensa. Há uma pressão para entregar a terceiros a negociação de nosso desejo. E isso não pode ser assim.
O feminismo surge de práticas muito longas, tradições de colaboração e horizontalidade e pluralidade absoluta. E devemos olhar para aquele momento em que não há vanguarda, não há hegemonia de um setor que leva ao resto. Como vamos entender isso com a proibição da prostituição? Uma coisa autoritária ao extremo. Eu não acho que possa haver esses autoritarismos no movimento feminista. A política das mulheres é uma libertação, não uma proibição. Obviamente, prostituição e bordel são uma das grandes escolas de pedagogia da crueldade masculina. Os homens entram em grupo e não buscam tanto acesso ao corpo da mulher, mas outra coisa: a celebração da masculinidade, gera um pacto de cumplicidade entre os homens, etc. O homem não vai sozinho ao bordel. Vai em um grupo. E, portanto, é um problema social de gênero. Mas não acho que a criminalização possa resolvê-lo. Porque o tráfico já é ilegal e isso não o aboliu. A proibição não é a eliminação do problema, é o convite a uma maior clandestinização.

Que futuro você vê para o feminismo nos próximos anos?
Durante muito tempo, pensei que o feminismo não estava chegando ao seu destino. O feminicídio não parou, a violência cresceu cada vez mais. Hoje, porém, acho que as mulheres estão tocando o núcleo da reprodução do poder: o padrão patriarcal. Pela primeira vez, vejo o acesso a uma nova política e a uma nova era social possível. Mas não vem pelo Estado. Vem das práticas das próprias mulheres, que são as guardiãs das raízes, do tecido dos laços. E meu esforço agora é demonstrar que essas práticas desse tecido de ligação são políticas. Nesse tecido existe uma política diferente. As marchas das mulheres não são como as de sindicatos, partidos políticos ou movimentos masculinos. Eles têm outras características: são festivos, brincalhões, amorosos. Amizades imediatas são geradas lá, elas são fisicamente próximas. E tudo isso gera links, que são o suporte da vida. Há uma vez de entender que existem os suportes da vida, e você deve cultivá-los e ver seu conteúdo político. Além disso, o que nos diz que estamos chegando ao nosso destino é a reação daqueles que nos odeiam. A reação violenta do habitual é a medida do que estamos avançando.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Leis ultrapassadas contra estupro colocam mulheres sob risco na Europa


FOTO: Rovena Rosa/ Agência Brasil

Carta Capital

Segundo Anna Blus, da Anistia Internacional, apenas oito países da região definem o crime com base em consentimento

Por Gabriel Bonis, de Berlim

Um relatório da ONG Anistia Internacional indica que apenas oito países europeus (Alemanha, Bélgica, Chipre, Irlanda, Islândia, Luxemburgo, Reino Unido e Suécia) possuem definições de estupro baseadas em consentimento da vítima.

Segundo o Rape in Europe Regional Overview, dos 31 Estados analisados, 23 (Áustria, Bulgária, Croácia, Dinamarca, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Estônia, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Hungria, Itália, Letônia, Lituânia, Malta, Noruega, Polônia, Portugal, República Tcheca, Romênia e Suíça) possuem definições legais de estupro com base na força, ameaça de força, coerção ou incapacidade da vítima de se defender.

Em alguns casos, o sexo sem consentimento é caracterizado ainda como “uma ofensa separada e menor”. “Por exemplo, na Croácia, ‘relação sexual sem consentimento’ tem uma pena máxima de cinco anos, ao contrário de dez anos por estupro”, destaca a ONG.

“As implicações de como a sociedade entende o estupro são enormes. Se a lei não estabelece claramente que sexo sem consentimento é estupro e crime, como tais crimes podem ser evitados? Se a lei reforça o mito de que o estupro só ocorre quando um estranho pula de trás de uma árvore e ataca alguém, como a maioria dos estupros – cometidos por conhecidos das vítimas – podem ser prevenidos?”, pergunta Anna Błuś, pesquisadora da Anistia Internacional para Europa Ocidental e Direitos da Mulher.

A ONG destaca ainda que apenas Alemanha, Bélgica, Chipre, Islândia, Luxemburgo e Suécia dos 23 países que ratificaram a Convenção de Istambul (Áustria, Croácia, Dinamarca, Eslovénia, Espanha, Estónia, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Itália, Malta, Noruega, Polónia, Portugal, Roménia e Suíça) e dos oito que assinaram mas ainda não o ratificaram (Bulgária, República Checa, Hungria, Irlanda, Letónia, Lituânia, Eslováquia, Reino Unido) não implementaram a definição legal de estupro presente no acordo.

Em 2011, o Conselho da Europa adotou a Convenção de Istambul. Em vigor desde 2014, o documento define como os Estados-Membros do bloco devem lidar com a violência de gênero, garantindo direitos às mulheres a uma vida privada e pública livre de violência. O texto também proíbe explicitamente a discriminação por orientação sexual e gênero.

De acordo com o levantamento mais recente da Agência da União Europeia para os Direitos Fundamentais (FRA) de 2014, 11% das mulheres entrevistadas sofreram alguma forma de violência sexual desde os 15 anos de idade, seja por um parceiro ou por outra pessoa. Uma em cada 20 mulheres (5%) foi violada no mesmo período.

A FRA estima que 13 milhões de mulheres na UE tenham sofrido violência física nos 12 meses anteriores às entrevistas do relatório e que 3,7 milhões de mulheres na região sofreram violência sexual no mesmo período.


Politike: De acordo com o relatório da Anistia Internacional, a maioria dos países europeus ainda não reconhece na lei que sexo sem consentimento é estupro. Por quê?
Anna Błuś: A maioria desses países ainda define estupro com base na força física, em sua ameaça, coerção ou na incapacidade da vítima de se defender. Há várias razões para tanto. Algumas leis são simplesmente desatualizadas e precisam ser alinhadas com os padrões internacionais de direitos humanos. Em alguns países, há falta de vontade política em realizar a mudança para uma definição baseada em consentimento, ligada à falta de compreensão de sua importância para a sociedade. O acesso à justiça devido a um estupro, uma questão predominantemente feminina, não é prioridade suficiente para alguns governos. Mas creio que as coisas estão seguindo lentamente na direção certa e podemos agradecer aos bravos sobreviventes e ativistas.

Politike: Quais são as implicações desse cenário para as mulheres? 
AB: Quando o sexo sem consentimento não é reconhecido como estupro na lei, ele não apenas impede o acesso das vítimas à justiça por esse crime, mas também promove mitos e percepções prejudiciais sobre o que é estupro. O que, por sua vez, torna a prevenção de estupro muito difícil. Alguns estupros caem em lacunas em países onde não existem definições baseadas em consentimento. Se uma mulher ficou paralisada durante um ataque, o que acontece com muita frequência, e, portanto, não resistiu fisicamente, o caso pode não cair na definição de estupro, já que nenhuma violência física pode ser comprovada. As implicações de como a sociedade entende o estupro são enormes. Se a lei não estabelece claramente que sexo sem consentimento é estupro e é crime, como tais crimes podem ser evitados? Se a lei reforça o mito de que o estupro só ocorre quando um estranho pula de trás de uma árvore e ataca alguém, como a maioria dos estupros, cometidos por conhecidos das vítimas, podem ser prevenidos?

Politike: O que precisa ser feito para resolver esse problema legislativo?
 AB: As autoridades precisam tomar iniciativa e alterar as definições legais, reconhecendo o sexo sem consentimento como estupro. É um primeiro passo que deve ser adotado para adequar suas leis aos padrões internacionais e melhorar o acesso à justiça. Mas a lei em si não é suficiente. Vemos que mesmo em países com uma definição baseada em consentimento existem barreiras ao acesso à justiça. É preciso haver treinamento para profissionais da área jurídica, incluindo juízes, procedimentos adequados devem ser implantados para proteger as vítimas de novos traumas durante o processo legal, bem como educação adequada e abrangente sobre sexualidade e relacionamentos e conscientização sobre mitos de estupro e consentimento em todos os níveis da sociedade.

Lugar mais perigoso para mulheres é a própria casa, diz ONU

de UNISINOS



Segundo o relatório, assassinatos cometidos por parceiros ou familiares normalmente não são ataques únicos, mas resultado de abusos domésticos anteriores.

A informação é publicada por Exame, 26-11-2018.

 O lar é o lugar mais perigoso para uma mulher, indicou estudo da Organização das Nações Unidas (ONU) que descobriu que o número de mulheres assassinadas por parceiros ou familiares está crescendo globalmente.

 Cerca de 50 mil mulheres foram assassinadas em todo o mundo no ano passado por um atual ou ex-parceiro ou por um familiar — o equivalente a 137 mortes por dia, ou seis por hora — informou o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC, na sigla em inglês).

 “Embora a vasta maioria de vítimas de homicídio seja de homens, as mulheres continuam a pagar o preço mais alto como resultado da desigualdade de gênero, da discriminação e de estereótipos negativos”, disse o diretor-executivo do UNODC, Yury Fedotov, em comunicado.

 Apesar de recentes campanhas de destaque, como a #MeToo, na qual mulheres denunciaram publicamente casos de assédio sexual, elas ainda têm muito mais probabilidade de serem assassinadas por seus parceiros ou familiares. 

O número total de assassinatos deste tipo subiu levemente entre 2012 e 2017 –e a proporção de vítimas assassinadas por parceiros ou familiares subiu de menos de meio, em 2012, para quase seis em dez mulheres no ano passado, indicou o estudo.

Muitas foram assassinadas por parceiros abusivos, enquanto outras foram vítimas dos chamados crimes de honra ou de disputas por dotes, acrescentou.

 Assassinatos cometidos por parceiros ou familiares normalmente não são ataques únicos, mas resultado de abusos domésticos anteriores, segundo o relatório.

“Essas descobertas chocantes demonstram as consequências devastadoras da desigualdade de gênero que perpetua a violência contra as mulheres”, disse Sarah Masters, diretora do grupo de direitos humanos Womankind Worldwide, à Thomson Reuters Foundation.

O relatório do UNODC pediu por mais ações para combater a violência de gênero, incluindo maior coordenação entre a polícia, médicos e serviços sociais, assim como esforços para garantir que serviços de apoio especializado estejam disponíveis para mulheres em situações de risco.

Homens também devem ser envolvidos em programas para combater normas de gênero nocivas desde a educação primária, acrescentou.

Estado que mais aderiu ao bolsonarismo é líder em violência contra a mulher


Publicado originalmente no Portal Catarinas


Matéria especial pelo Dia Internacional da Não Violência contra a Mulher, 25 de novembro
/Foto: Rafaela Martins


A cabeleireira Violeta*, 34 anos, não sabe ao certo quando começou a ser abusada pelo avô. Tinha cinco ou seis anos, talvez um pouco menos. Os abusos ocorreram durante infância e início da adolescência, período em que morou junto com os pais e irmãos na casa dos avós, em Tubarão, município de 100 mil habitantes no sul de Santa Catarina.

“Havia um terrorismo, ele era autoritário e eu fazia pelo sentimento de obrigação. Numa época, ele passou a me dar balas, presentes e até dinheiro para me aliciar”, conta a vítima.

Desde que o silêncio foi rompido, aos 13 anos, Violeta passou a ser perseguida pelo patriarca e teve que lidar com o isolamento do convívio familiar. O abusador, já falecido, à época passou a impedir a presença da neta nas festas familiares por não aceitar a presença do namorado.

“Quando a gente vê as notícias entende o porquê da demora na denúncia. A família não acredita na versão da vítima e ainda apoia quem cometeu a violência. Percebi como as pessoas são hipócritas. Todos consideram a violência sexual contra crianças um absurdo, mas quando acontece com a sua família, não tomam atitude”, afirmou a vítima.

O caso nunca chegou à Justiça e, como tantos outros, não está contabilizado nas estatísticas do estado que já ocupa a liderança em violência doméstica. Santa Catarina tem o índice mais alto do país, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2018, com 225 casos para cada 100 mil habitantes, e é o segundo em violência doméstica quando as vítimas são somente mulheres, com 368,1 registros para cada 100 mil mulheres, atrás apenas do vizinho Rio Grande do Sul com taxa de 398 – enquanto a média nacional é 183,9.

Machismo, misoginia, conservadorismo e autoritarismo são alguns dos fatores que implicam diretamente na violência sistêmica que atinge as mulheres e meninas dentro de suas casas. Não é por acaso que o político defensor de tais bandeiras morais tenha conquistado tantos eleitores no estado, expressando o tratamento que dispensa às suas mulheres também nas urnas.

Santa Catarina, o único estado com nome de mulher, registrou a maior adesão a Bolsonaro (65,82% dos votos válidos no primeiro turno e, no segundo, 75,92%) – esse “que só não estupraria mulheres que não merecem”. O estado é o primeiro em tentativa de estupro com 10,8 casos para cada 100 mil habitantes, e o segundo em estupro com uma taxa de 57%, perdendo apenas para Mato Grosso do Sul que registrou em 2017 o número de 66 casos – duas vezes mais que a média nacional que é de 29,4.

Na cidade onde Violeta sofreu abuso durante toda a sua infância, a proporção de Bolsonaro foi ainda maior: 74,63% de votos no primeiro turno e 83,41% no segundo.

“A URNA MOSTROU PORQUE O ESTADO É LIDERANÇA EM VIOLÊNCIA 
CONTRA A MULHER”, AFIRMOU SUÉLEN DADAM, COORDENADORA DA COORDENADORIA DA MULHER, EM OUTUBRO, 
DURANTE REUNIÃO DO FÓRUM DE ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES DO CAMPO, DA FLORESTA, DAS ÁGUAS E QUILOMBOLAS.

Em média, nove casos de violência sexual são registrados todos os dias em Santa Catarina, com uma população de aproximadamente três milhões e meio de mulheres. Esses números significam apenas uma pequena parcela da realidade vivida pelas catarinenses, pois pesquisadores responsáveis pelo Atlas da Violência 2018, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), apontam que a subnotificação de casos de estupro, por exemplo, pode chegar a 90%, “tendo em vista o tabu engendrado pela ideologia patriarcal, que faz com que as vítimas, em sua grande maioria, não reportem a qualquer autoridade o crime sofrido”.

As crianças são as maiores vítimas de estupro no Brasil. Conforme indica o Atlas, 50,9% dos casos registrados em 2016 foram cometidos contra menores de 13 anos e 17% contra adolescentes. O estudo apontou alta taxa de recorrência nos casos de estupro. Em 2016, 42% das vítimas disseram não ser a primeira vez que sofriam esse tipo de violência. Nesses casos, a maioria dos autores era conhecido das vítimas.

“O estupro é uma das violências mais hediondas porque é aí que se exerce o poder. É preciso dizer que esse índice diz respeito ao estupro de mulheres e meninas. As meninas estão sendo violentadas dentro de suas casas. A gente questiona isso, mas o Estado não dá respostas”, afirma Sheila Sabag, integrante do Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres (CNDM) e presidenta do Conselho Estadual dos Direitos da Mulheres em Santa Catarina (CEDIM).

A “sagrada família” e as violências contra meninas e mulheres No programa de governo, Bolsonaro prometia com letras maiúsculas e exclamações “combater o estupro de mulheres e crianças”. É a única citação à mulheres e violência sexual de seu plano, seguido de um gráfico com o número de estupros no país. O texto mencionava o crime de violência sexual e logo partia para uma abordagem geral do problema da criminalidade, apresentando como solução o aumento do encarceramento, com base no argumento de que os estados com maiores taxas de pessoas privadas de liberdade são os que “mostram mais avanços” – sem ao menos listar quais seriam esses avanços.

Não há explicações ou informações sobre como seria feito esse combate. Mas, em entrevistas, costuma defender a castração química – método hormonal para tentar frear o impulso estuprador, comprovadamente falho.

Já o tema da família, acionado ostensivamente em sua campanha, foi mencionado 17 vezes. Contrariamente à ideia defendida pelo movimento de mulheres de que o “pessoal é político”, e o que acontece dentro das casas deve estar sob proteção do Estado conforme prevê a Lei Maria da Penha, o eleito dizia que a família é sagrada “e o Estado não deve interferir em nossas vidas”.

Nesses dois pontos está uma das maiores contradições: não é possível combater a violência sexual sem que haja atuação do Estado e uma mudança na cultura familiar, já que a casa é um dos principais espaços de violência contra a mulher. Se Bolsonaro quer mesmo combater esse problema, terá de rever suas declarações.

No total o Atlas mapeou mais de 13 mil casos registrados como ocorridos dentro da moradia da pessoa, ambiente que prevalece fundamentalmente os casos de estupro cometidos por conhecidos das vítimas. Nessa situação a casa é a cena do crime em 78,6% dos casos.

Só em 2017 foram registrados 193.482 casos de lesão corporal dolosa contra brasileiras dentro de casa. Estima-se que cinco mulheres são espancadas a cada 2 minutos; o parceiro (marido, namorado ou ex) é o responsável por mais de 80% dessas ocorrências, segundo a pesquisa Mulheres Brasileiras nos Espaços Público e Privado de 2010.

De acordo com o Mapa da Violência 2015, a agressão a mulheres é cometida, na maior parte dos casos, por pessoas conhecidas da vítima; diferentemente da violência contra os homens que é praticada por pessoas desconhecidas. “Todos esses aspectos permitem caracterizar a maior incidência da violência doméstica e familiar entre as vítimas do sexo feminino”, conclui o estudo.

Teresa Kleba Lisboa, professora do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), acredita que a defesa da família como um espaço intocável é vertente da máxima: “em briga de marido e mulher não se mete a colher”.

 “É NAS FAMÍLIAS SAGRADAS QUE MAIS ACONTECEM VIOLÊNCIA, ABUSO SEXUAL, NEGLIGÊNCIA E INCESTO. O PRINCIPAL SLOGAN DO MOVIMENTO FEMINISTA É ‘O PESSOAL É POLÍTICO’. É JUSTAMENTE TIRAR A VIOLÊNCIA DO ESPAÇO PRIVADO PARA O PÚBLICO, VISIBILIZAR E ROMPER O SILÊNCIO. A QUESTÃO DA VIOLÊNCIA PRECISA DE VISIBILIDADE PARA O AUTOR SER PUNIDO”, APONTA A PÓS-DOUTORA EM ESTUDOS DE GÊNERO.

Assim como não é possível prevenir a violência sem que o assunto seja discutido em sala de aula, como estabelece a Lei Maria da Penha – algo que políticos conservadores rejeitam ostensivamente. O projeto Escola sem Partido, por exemplo, quer evitar qualquer assunto que supostamente sexualize as crianças, além de qualquer menção à palavra “gênero” nas escolas. O combate à chamada “ideologia de gênero” – um conceito que inclui desde aulas de educação sexual a propostas anti-homofobia – é uma das bandeiras das candidaturas ligadas à Igreja Evangélica e ao conservadorismo e se tornou uma bandeira de Bolsonaro.

“Essa categoria de ideologia de gênero não existe nos estudos feministas, foi forjada e deturpada. Só existe perspectiva de gênero, identidade de gênero e relações de gênero. O sinônimo para eles é perverter as crianças, quando na verdade falar sobre esses temas é justamente para prevenir violências contra elas”, diz a estudiosa.

Bolsonaro e seus apoiadores encontraram no chavão “ideologia de gênero” uma maneira efetiva de acionar fatos políticos contra adversários, como uma das publicações educativas do projeto Escola sem Homofobia, impedida de ser entregue a escolas por ação de grupos religiosos que a taxaram pejorativamente de “kit gay”. O então candidato chegou a ser obrigado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a remover notícias falsas que associavam Fernando Haddad (PT) ao tema.

O governador eleito de Santa Catarina, Comandante Moisés, do PSL, mesmo partido de Bolsonaro, é um dos que ganhou apoio popular com essa agenda conservadora. Ele já avisou que vai “trabalhar para que o tema ideologia de gênero não faça parte dos planos municipais de educação”. E já não faz. Isso demonstra o conhecimento dele perante o tema. Ele não considera a discussão sobre o que representa o machismo histórico e o conservadorismo que estão por trás o alto índice de violência contra a mulher no estado e que no governo dele não devem mudar.

Ilze Zirbel, doutora em Filosofia, acredita que a violência doméstica e o “pânico com as discussões sobre sexualidade e gênero nas escolas” têm origens comuns.

“A POSIÇÃO DE AUTORIDADE DE HOMENS CONFERE ÀQUILO QUE DIZEM UM CERTO VALOR DE VERDADE. SE ESSE VALOR DE VERDADE FOR QUESTIONADO, TODA A REALIDADE DA PESSOA CONSERVADORA É ABALADA: SEU LUGAR NO MUNDO E O PRÓPRIO MUNDO DELA PODE VIRAR DE PERNAS PARA O AR”, EXPLICA.


Neofascismo atualiza o machismo 
Santa Catarina é o estado com o maior número de pessoas que se declaram brancas (84%) segundo o último Censo de 2010. É também o estado mais conservador do país, onde direita e extrema direita se alternam no poder há séculos e a família tem um peso social significativo. “Há um predomínio patriarcal, do pai ou do marido. Em muitos municípios o poder é materializado em três figuras: o padre, o pai e o patrão”, diz Reinaldo Lohn, professor do Departamento de História da Universidade do Estado de Santa Catarina.

Formada por 295 municípios, Santa Catarina tem aproximadamente 7 milhões de habitantes – cerca de 15% em áreas rurais. Em mais da metade dos municípios a população gira em torno de dez mil habitantes, alguns com população inferior a 1500. “Não temos grandes cidades, por isso os mecanismos de controle social são muito efetivos”, explica Lohn. “Há uma certa moralidade burguesa e cristã que encontra terreno razoável para ter durabilidade ao longo do tempo em função dessa estrutura demográfica e urbana.”

Não é a primeira vez que o estado flerta com o fascismo sob o lema da defesa tradição, família e propriedade. Nos anos 1930, catarinenses – a grande maioria de origem alemã – apoiaram massivamente a Ação Integralista Brasileira (AIB), movimento político nazista à brasileira criado por Plínio Salgado. “As relações políticas do estado são razoavelmente previsíveis, o fenômeno Bolsonaro criou um nível de imprevisibilidade, mas que no caso de Santa Catarina foi onde o partido integralista de inspiração fascista e extrema direita teve mais força”.

No documentário Anauê! – O Integralismo e o Nazismo na Região de Blumenau, lançado no ano passado, o cineasta Zeca Pires recuperou essa história pouco debatida, a do integralismo no Brasil e o contexto que o levou a ter o maior número de adeptos no Sul do País. No filme é possível ver imagens de bandeiras com a suástica nazista em eventos ocorridos na região.

“Tudo muito triste. Não aprenderam com a história, mas creio que está em parte no DNA e muito na educação e na cultura, falo desse gen preconceito, racista e intolerante”, afirma o diretor do documentário sobre o cenário atual de apoio ao fascismo.

A guerra cultural empreendida pela extrema direita no Brasil e em vários países do mundo, visivelmente Inglaterra e Estados Unidos, não se trata somente de uma onda conservadora, mas do avanço do reacionarismo. “O conservadorismo político não necessariamente é fascista. Ele é inclusive bastante cético, desacredita da natureza humana, acha que as coisas não vão mudar. Esse reacionarismo toca em pontos nevrálgicos como o gênero e renova o anticomunismo via antipetismo. É novo em relação ao conservadorismo porque é insurgente, chega a ser quase uma demanda por ruptura social. Há um ativismo forte de direita que com as tecnologias se mostrou muito mais eficaz para gerar efeitos de ondas”, coloca o professor.

O apego de Bolsonaro à violência, contestada por defensores dos direitos humanos, paradoxalmente é o que ativa o fascínio de seus eleitores, como explica Lohn.

“HAVIA UMA DEMANDA PELA ‘DEMOCRATIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA’, É COMO SE ELE DISSESSE: ‘VOCÊ VAI TER DIREITO DE PRATICAR A SUA VIOLÊNCIA PARTICULAR’. O ALVO ACABA SENDO AS PESSOAS MAIS FRÁGEIS. NO ÂMBITO DOMÉSTICO, ISSO TENDE A SER UM HORROR PARA AS MULHERES”.


A liderança em violências 
Diagnosticar o problema da violência contra as mulheres para a construção de políticas públicas efetivas demanda a compilação e o mapeamento dos casos. O desencontro de informações e dados coletados nas diversas áreas institucionais resulta não apenas da falta de estatísticas, mas também da desconfiança dos índices apresentados, como é o caso da liderança do estado nos casos de violência doméstica, apontado pelo Anuário.

O estado não cumpre a Lei Estadual 15.806, de 16 de abril de 2012, que obriga o Poder Executivo a registrar e divulgar os índices de violência contra a mulher de acordo com indicação da raça/cor das vítimas de violência. Sequer a idade das vítimas é informada.

“O anuário da segurança pública está sendo um primeiro esforço de sistematização de dados no país, mas cada estado tem um sistema próprio. Se pegarmos, por exemplo, Saúde, Polícia Civil, Militar, terão outros dados. As ocorrências geradas pelo 190 não fecham com as da civil. Estamos tentando minimizar isso. Se a PM gera um BO, a Civil tem que instaurar o inquérito. Mas isso não necessariamente acontece por uma questão corporativa deles”, explica a promotora Hélen Sanches que atua na Promotoria de Justiça da área da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, em Florianópolis.

Entre 2008 e 2011 o número dos registros de violência doméstica aumentou 85%, possivelmente pelo efeito da Lei Maria da Penha, aprovada em 2006. Desde 2011 esses registros se mantiveram estáveis com um acréscimo de 10% no período. Os dados podem ser acessados no portal da Secretaria de Segurança Pública do Estado.

Esforço dos movimentos de mulheres e de deputadas estaduais, a lei que institui o Observatório da Violência Contra a Mulher em Santa Catarina, aprovada em 2015, foi vetada pelo governo do Estado por ser considerada inconstitucional. O projeto, de autoria da deputada Ana Paula de Lima (PT), buscava ordenar e analisar dados sobre violência contra mulher, além de integrar os órgãos de atendimento.

“O veto chegou a ser derrubado pelos deputados, mas o governo argumentou que não havia recursos disponíveis para que ela fosse regulamentada. Recentemente, a lei foi arquivada. De acordo com o texto do arquivamento, há outras prioridades para o governo”, lembra Sheila Sabag, integrante do CNDM e presidenta do CEDIM.

A coordenadora das Delegacias de Polícia de Atendimento à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso (DPCAMIs), Patrícia Zimmermann D’Ávila, acredita que a liderança está ligada ao trabalho de conscientização feito pelo Estado e que motiva as vítimas a denunciarem.

Uma das frentes é o programa “Polícia Civil por elas”, que atua na aproximação com as vítimas para dar vazão às notificações. Já a Rede Catarina de proteção à mulher, projeto da Polícia Militar ainda em fase piloto, consiste no patrulhamento para assegurar a segurança das vítimas, especialmente protegidas por medidas protetivas.

“É uma política pública para não mascarar os números. Nossa ideia é intervir na primeira forma de violência que é a ameaça, onde geralmente a mulher não representa ou desiste na audiência, para evitar o feminicídio lá na frente”, argumenta a delegada.

Apesar da liderança em violência doméstica, o estado ocupa a décima posição em feminicídios, ao lado do Maranhão, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, com uma taxa de 1,4 casos para cada 100 mil mulheres. “O feminicídio é o dado inequívoco, Santa Catarina teve 35 casos até o momento. A violência doméstica é um caso complexo, com muitos fatores associados. Mas o acesso à informação aumenta as denúncias, as delegacias funcionando favorecem a notificação”, assinala a promotora.

Mesmo assim, a representante do MP não deixa de atentar para a possibilidade de subnotificações, especialmente no interior, já que os números mais expressivos se concentram na região da capital. “A pessoa que trabalha em um assentamento no Extremo-Oeste tem mais dificuldade de acessar o equipamento e fazer o registro, buscar medidas protetivas. Mas isso não quer dizer que ela não possa estar protegida, que não existem locais para isso. Uma das frentes de enfrentamento à violência contra a mulher é a violência no campo, essa sim não aparece. Só aparece quando se consuma o feminicídio”.

Sanches trata com pouca importância as estatísticas. “Eu não vejo que seja só o fator cultural, que o estado tenha uma tradição conservadora, uma tradição talvez de imigração de culturas conservadoras. Eu não me preocupo tanto com a estatística, eu me preocupo mais com a realidade, o dado pra mim não diz muita coisa”, afirma a promotora.

Claudia Regina Nichnig, professora de História da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), discorda que a liderança de SC possa ser explicada pelo acesso das mulheres aos serviços, já que não há base para comparação com outros estados. “O fato de ser um estado conservador e grande número de vítimas nas áreas rurais é reflexo da sociedade que a gente vive e tipo de população. Temos que lidar com o fato de ser um dos estados mais violentos e enfrentá-lo com medidas urgentes em nível de educação e políticas públicas”, argumentou.

Ao contrário do que as vozes institucionais argumentam, Teresa Kleba acredita que a tradição cultural do estado, voltada a comunidades interioranas de colonização italianas, alemãs e polonesas, pode interferir na identificação da violência de gênero. “Com certeza essas pessoas nunca ouviram falar nisso que a gente acha super importante esclarecer, conscientizar sobre igualdade entre homens e mulheres”.

Para a estudiosa de gênero, a violência institucional nos espaços que deveriam acolher as vítimas pode ocultar uma cifra ainda maior. “As vítimas não têm tanta facilidade assim para fazer a denúncia. A maioria desconhece as delegacias e direitos, tem medo de represálias, é exposta a humilhações e maus tratos, porque grande número de funcionários ainda considera esses casos como não-prioritários. Desqualificam as vítimas, desacreditam os relatos, não efetuam provas chaves, priorizam provas físicas e outorgam pouca credibilidade para os depoimentos delas”. observa.

As garras do machismo no sistema de justiça 
A violência doméstica é a principal queixa nas Delegacias de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso do estado. Foi uma dessas delegacias, na cidade de São José, que Laura* procurou depois de ter sido agredida pelo marido. Quando prestou a queixa, foi surpreendida pelo escrivão: “você realmente deseja prender o pai dos seus filhos?’, ele perguntou. Laura desistiu em prosseguir.

“ELES USAM A LEI PARA DESESTIMULAR A MULHER À DENÚNCIA. 
ESSA MULHER FICOU POR UMA HORA E MEIA NA DELEGACIA PENSANDO SE IA DENUNCIAR”, CONTOU A ADVOGADA DA VÍTIMA, IRIS GONÇALVES MARTINS, DO COLETIVO 8M.

A advogada diz que na justiça catarinense é comum, por exemplo, o arquivamento de processos por agressão quando testemunhas afirmam que o agressor é um bom pai. “Sempre que vem aquela história de que ele é um bom pai, o processo é extinto. Isso se sobrepõe à violência, não interessa se espancou a mãe. Um bom pai espanca a mãe da criança?”, questiona a advogada.

Em Pinhalzinho, interior do estado, uma mulher conseguiu fugir de casa enquanto era agredida pelo marido e acionou a polícia militar. Ainda com marcas no pescoço, ela passou pelo exame de corpo de delito que comprovou a agressão, mas teve o pedido de medida protetiva negado. O juiz entendeu que “eventuais brigas de casais não demandam a atuação do Poder Judiciário de forma tão severa assim”. “Não é qualquer briga do casal que se permite a utilização das extremas vias do Direito Penal. (…) As medidas cautelares de urgência devem ser aplicadas em último caso e quando efetivamente haja provas da violência sofrida”, diz trecho da decisão. O processo foi arquivado.

A decisão do juiz levou ao arquivamento do processo-crime. “Essa decisão confirma a nossa percepção de como o machismo está estruturado em todos os sistemas de justiça”, pontua a advogada.

Já os motivos para a descontinuidade dos trâmites legais por parte da mulher agredida estão relacionados tanto à reconciliação com o agressor quanto à necessidade de provar que os atos violentos ocorreram, o que indica a fragilidade do entendimento de que a palavra da vítima basta.

Segundo Hélen Sanches, ainda existe a necessidade de comprovação de que a vítima estava em uma relação violenta. “Muitas não registram ocorrência porque não tem como provar, mas a versão delas é importante e pode corroborar essa versão com outros elementos sobre a relação. A Lei Maria da Penha veio dar essa proteção exatamente porque a violência ocorre sem a presença de testemunhas, mas precisamos de elementos que comprovem que a relação era agressiva. O filho pode ser testemunha, os vizinhos também”.

Esta cifra oculta de mulheres que não quiseram prosseguir com o processo, somadas aquelas que nem mesmo fizeram uma ocorrência por acharem que suas versões não seriam suficientes para a comprovação da violência, também está relacionada com o baixo percentual estimado de denúncias.


Ausência de políticas públicas 
Uma das principais reivindicações do movimento de mulheres no estado é a criação de uma secretaria estadual específica, dotada de orçamento próprio e com o plano estadual de políticas para as mulheres, pautado na última Conferência Estadual de Políticas para Mulheres.

A Coordenadoria Estadual da Mulher integra a Secretaria de Assistência Social, mas não tem nem orçamento. “Enquanto não houver uma Secretaria de Estado da Mulher, não teremos execução de políticas para mulheres em Santa Catarina. Tanto a coordenação quanto a secretaria de assistência social não executam políticas para as mulheres, porque não têm recursos para isso”, sustenta Sheila Sabag, do CEDIM.

A assinatura do Pacto Maria da Penha de enfrentamento à violência contra as mulheres, no lançamento da Campanha 16 dias de ativismo, em 20 de novembro, é um aceno do governo para a possibilidade de elaboração de política estadual voltada à coibir a violência e desigualdade de gênero. O acordo interinstitucional é direcionado ao enfrentamento a todas as violências contra as mulheres a partir de uma visão integral do fenômeno que é a violência, nas dimensões da prevenção, assistência, combate e garantia de direitos.

“É um marco histórico para as mulheres de SC. Nesta assinatura há um indicativo de que o Estado está começando a enxergá-las. É inadmissível que o Estado não tenha políticas públicas voltadas ao enfrentamento à violência contra as mulheres. Precisamos que as mulheres sejam atendidas em sua integralidade e não em pequenas ações. Precisamos que a Lei Maria da Penha seja aplicada corretamente por todos os organismos responsáveis em cumpri-la”, defendeu a presidenta do CEDIM.

Sabag argumenta que o enfrentamento à violência deve envolver também ações que promovam autonomia econômica para que as mulheres possam romper o ciclo de violência. Segundo a conselheira, a reincidência dos casos de violência é alta, porque as vítimas não contam com a proteção do Estado quando denunciam o agressor. Em toda Santa Catarina há apenas nove casas-abrigos, geridas pelos municípios e duas casas de passagens que atendem também mulheres que vivem em situação de rua.

Kleba assinala que há um descaso histórico das autoridades catarinenses com as pautas das mulheres. “O Estado não prioriza políticas públicas, a dotação orçamentária para combater a violência de gênero é sempre irrisória, porque nossos gestores acham que tem questões mais importantes, provavelmente eles também naturalizam as violências e acham que se as mulheres foram estupradas é porque provocaram”.

Mais de uma década depois da Lei Maria da Penha, Santa Catarina ainda é o único estado da região Sul que não implantou atendimento policial especializado para mulheres por meio das delegacias exclusivas, como prevê a legislação da violência doméstica. A delegada Patrícia Zimmermann D’Ávila informou que em Joinville e Florianópolis as mulheres encontram atendimento 24 horas, mas não soube dizer ao certo quantas DPCAMIs das 31 unidades funcionam dessa forma.

A criação de Delegacias Especializadas da Mulher com atendimento exclusivo foi uma das 28 recomendações feitas ao Estado pela Comissão Parlamentar de Inquérito, aberta pelo Senado Federal em 2011 e concluída em 2013. Instituída com “a finalidade de investigar a situação da violência contra a mulher no Brasil e apurar denúncias de omissão por parte do poder público”, a comissão mostrou preocupação com a contínua ascensão dos números de violência doméstica no estado. Foram recomendadas ainda a criação de secretaria da mulher e melhorias no sistema de coleta de dados. De lá para cá, pouco mudou.


Política pública federal: Mulher, viver sem violência 
A política pública mais consistente voltada à violência doméstica em Santa Catarina foi uma iniciativa federal, o programa “Mulher, viver sem violência”, que doou dois ônibus em 2013 para atender vítimas. O projeto chegou a ficar abandonado por falta de recursos e só foi reativado no ano passado depois de pressão popular.

Cerca de 90% dos municípios já foram atendidos pelo programa, cujo cronograma é feito pela coordenadoria e Fórum de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres do Campo, da Floresta, das Águas e Quilombolas. Em algumas cidades o atendimento momentâneo é a única oportunidade das mulheres romperem o silêncio. “No município de Angelina (com cinco mil habitantes), que teve solicitada a sua inclusão no calendário deste ano, o atendimento ocorreu durante dois dias e recebemos uma denúncia de estupro”, relata a coordenadora da Coordenadoria da Mulher, Suelen Dadam.

Em Lages, na serra catarinense, onde os índices de violência são altos, o atendimento itinerante foi incluído no calendário como programa fixo e adotado como política pública do município. Porém, nem todos são simpáticos à ação. “Há ainda muitos municípios que têm certa resistência em receber o projeto, porque fazem outros trabalhos e acham que quando a unidade chega o impacto dela é negativo, principalmente em lugares com poucos habitantes, onde todo mundo fica falando e as mulheres têm medo de buscar ajuda”, expõe a executiva.

“HÁ MUNICÍPIOS, COMO SÃO JOAQUIM, EM QUE AS MULHERES PRECISAM DO BÁSICO COMO SANEAMENTO E TELEFONE. 
NESSA CIDADE PERGUNTAMOS AO DELEGADO COMO A VÍTIMA VAI PEDIR SOCORRO SE NÃO TEM COBERTURA DE TELEFONIA CELULAR E O TELEFONE PÚBLICO FICA A QUARTEIRÕES DE DISTÂNCIA. 
QUANDO A GENTE VÊ QUE ESSAS COISAS ACONTECEM NESTE ESTADO ENORME, COM UM DOS MELHORES IDHS DO BRASIL, A GENTE PERCEBE A FRAGILIDADE DAS POLÍTICAS SOCIAIS”, COLOCOU A CONSELHEIRA DO CEDIM.

A cultura conservadora e patriarcal aliada à ausência de políticas públicas e pouca eficácia dos equipamentos de prevenção e coibição da violência, formam o panorama na atualidade de Santa Catarina como o estado mais machista e violento do país para as mulheres.

*Os nomes são fictícios para proteger a identidade das entrevistadas.
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