Terça, 09 de abril de 2013
"É dever dos Estados atuar com a
devida diligência para prevenir, investigar, processar, punir e reparar
a violência contra a mulher, assegurando às mulheres recursos idôneos e
efetivos. A tolerância estatal à violência contra a mulher perpetua a
impunidade, simbolizando uma grave violência institucional que se soma
ao padrão de violência sofrido por mulheres", escrevem Flávia Piovesan e Silvia Pimentel, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 07-04-2013.
Flávia é professora
doutora da PUC/SP, membro do Cladem (Comitê Latino-Americano e do Caribe
para a defesa dos direitos da mulher) e do Conselho de Defesa dos
Direitos da Pessoa Humana e procuradora do estado.
Sílvia é professora
doutora da PUC/SP, membro do Cladem, membro da comissão de Cidadania e
Reprodução e membro do Comitê da ONU sobre a Eliminação da Discriminação
Contra a Mulher.
Eis o artigo.
Em 30 de março, cinco homens estupraram uma turista americana e espancaram seu namorado francês em uma van que circulava em Copacabana.
Em 16 de março, uma mulher suíça, viajando de bicicleta na região central da Índia com
o marido, foi vítima de estupro perpetrado por oito homens.
Em 10 de
fevereiro, um grupo de cinco homens mascarados estuprou seis espanholas
em uma casa de praia próxima a Acapulco, no México.
Em 26 de dezembro, o estupro coletivo de uma mulher em um ônibus em Nova Délhi
chocou a comunidade internacional, gerando profunda comoção e intensos
protestos - fomentando a criação de uma comissão nacional na Índia que
recebeu mais de 80 mil sugestões para fortalecer as medidas de combate à violência contra a mulher.
A gravidade e a brutalidade do estupro
rompem o silêncio da violência epidêmica contra a mulher, realçando seu
componente cultural como expressão de relações de poder historicamente
desiguais e assimétricas entre homens e mulheres. Em virtude da
intencionalidade do agente e do profundo sofrimento físico, psíquico e
moral causado à vítima, a jurisprudência internacional tem equiparado o
estupro à tortura.
No caso brasileiro, o Mapa da Violência 2012 publicado pelo Instituto Sangari
aponta que, de 1980 a 2010, foram assassinadas no país em média 91 mil
mulheres. A mesma pesquisa ressalta que
duas em três pessoas atendidas
no SUS
são mulheres vítimas de violência doméstica ou sexual.
Fruto de reivindicação do movimento de mulheres, a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher foi adotada pela ONU em
1979, sendo hoje amplamente ratificada por 187 Estados. Embora a
convenção não explicite a temática da violência contra a mulher, o Comitê da ONU sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher
adotou relevante recomendação geral sobre a matéria, afirmando que: "A
violência baseada no gênero é uma forma de discriminação que seriamente
impede a mulher de exercer seus direitos e liberdades com base na
igualdade com relação ao homem".
Para a ONU, a violência contra as mulheres é
um fenômeno generalizado, que alcança um elevado número de mulheres,
sem distinção de raça, classe, religião, idade ou qualquer outra
condição.
No âmbito da ONU, o secretário-geral Ban Ki-moon,
em discurso perante a Assembleia Geral no último Dia Internacional da
Mulher (8/3/2013), reiterou o compromisso das Nações Unidas no combate à
atual epidemia mundial de violência contra a mulher.
Segundo a ONU,
sete em dez mulheres no mundo já foram vítimas de violência física e/ou
sexual em algum momento de sua vida
(dado da Campanha Unite to end
Violence against Women, lançada pelo secretário-geral em 2008).
Nesse sentido, a Comissão sobre o Status da Mulher (CSW
na sigla em inglês) da Assembleia-Geral da ONU, aprovou, durante sua
57ª sessão, realizada entre 4 e 15 de março de 2013, uma resolução
contendo as conclusões de seus países-membros sobre a eliminação e
prevenção de todas as formas de violência contra mulheres e meninas. A
resolução demanda expressamente que os Estados acelerem esforços para
desenvolver, revisar e fortalecer políticas para combater as causas
estruturais de violência contra mulheres e meninas, incluindo
discriminação e estereótipos de gênero, desigualdades e desequilíbrio
nas relações de poder entre homens e mulheres, entre outros fatores.
Reitera, ainda, a necessidade de empreender esforços com vistas a
erradicar a pobreza e as persistentes desigualdades econômicas, sociais e
legais principalmente por meio do fortalecimento da participação
econômica de mulheres e meninas, como uma forma de diminuir o risco de
violência.
De volta ao Brasil, em absoluta harmonia com os parâmetros protetivos internacionais, a Lei Maria da Penha inaugurou uma política integrada para prevenir, investigar, sancionar e reparar a violência contra a mulher. A adoção da Lei Maria da Penha
permitiu afastar a omissão do Estado brasileiro, que estava a
caracterizar um ilícito internacional ao violar obrigações jurídicas
internacionalmente contraídas quando da ratificação de tratados
internacionais.
É dever dos Estados atuar com a devida
diligência para prevenir, investigar, processar, punir e reparar a
violência contra a mulher, assegurando às mulheres recursos idôneos e
efetivos. A tolerância estatal à violência contra a mulher perpetua a
impunidade, simbolizando uma grave violência institucional que se soma
ao padrão de violência sofrido por mulheres.
Nesse contexto, há urgência na adoção de
medidas voltadas à prevenção e à repressão da violência sexual do
estupro, bem como à proteção de suas vítimas. Fundamental é avançar no Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra a Mulher, lançado em 2007, envolvendo todas as esferas federativas com o objetivo de consolidar uma Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, por meio da implementação de políticas públicas integradas.
Entre os desafios ao enfrentamento da violência sexual do estupro, destacam-se:
1) mapear a situação da
violência sexual contra a mulher (mediante a sistematização de dados,
adotando ficha de notificação compulsória de casos de violência sexual
nos serviços de saúde, identificando o alcance, o impacto e as vítimas
da violência);
2) ampliar ações de
conscientização e sensibilização pública, por meio de campanha nacional
contra a violência sexual contra as mulheres e meninas e pela promoção
da igualdade de gênero;
3) fortalecer serviços de
denúncia (enfrentando a impunidade, que se mostra ainda mais latente nos
casos de violência sexual, que em geral nem sequer são comunicados à
polícia em virtude do medo e da vergonha da vítima);
4) fomentar programas de
treinamento e capacitação para enfrentar a violência sexual contra as
mulheres especialmente nas áreas da segurança e da Justiça (combatendo
os estereótipos de gênero baseados em preconceito que ameaçam a
credibilidade da mulher, levando ao desprezo de suas denúncias);
5) avançar na atuação
integrada e articulada de instituições, sob a perspectiva
multidisciplinar e transetorial, visando à prevenção e repressão à
violência sexual do estupro;
6) conferir proteção e assistência às vítimas; e
7) identificar e implementar as práticas exitosas para o eficaz combate à violência sexual contra a mulher.
A adoção de políticas públicas voltadas à
prevenção, punição e erradicação da violência contra a mulher, em todas
as suas manifestações, surge como imperativo de justiça e respeito aos
direitos das vítimas dessa grave violação que ameaça o destino e rouba a
vida de tantas mulheres.
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