Não é segredo que nossa sociedade não tem legislação específica para
crimes de ódio. Quando uma pessoa é morta por fazer parte de um grupo
historicamente oprimido, os(as) assassinos(as) são acusados(as) de homicídio
simplesmente, sendo completamente ignorada a motivação do crime.
Feminicídio é o assassinato de uma menina ou mulher POR ela ser do
gênero feminino, ou seja, o assassino tem "raiva" dela por alguma
questão relacionada a sua feminilidade. Ontem, o famigerado goleiro Bruno foi finalmente condenado. Em
julgamento, ele confessou o que foi feito com a mãe de um filho dele. Eliza foi
assassinada de forma cruel e sem chance de defesa por ter tentado cobrar dele
os direitos legais de seu filho. Eliza foi vítima de um feminicídio. O corpo
dela foi esquartejado e dado para cães comerem.
Entregar um corpo para que animais se alimentem dele tem um forte
significado simbólico. Claro que, na prática, é uma tentativa de praticar um
crime perfeito: "Não há corpo, logo não há assassinato". Mas no âmago,
implica um ódio muito grande.
O cadáver é sagrado em nossa cultura. É peça fundamental para os ritos
de luto. Esquartejar um corpo é uma violação, transformá-lo em alimento para
animais é sugerir que aquela pessoa não significa nada. É preciso ter um
desprezo muito grande pela vítima para se chegar a tal ato sem qualquer
remorso.
Fiquei profundamente surpresa ao ler numa página do portal UOL que o
time Boa estava considerando contratar Bruno caso ele fosse inocentado. É
preciso muita coragem para contratar um autor de um crime tão hediondo, com
características de psicopatia. Mas o pior é que a matéria sequer mencionava os
crimes dele, e, na lateral direita da tela, apareciam fotos de uma sessão
chamada Belas da Torcida. Eram fotos de partes do corpo feminino, nunca
aparecia uma moça inteira: seios num decote ousado, bunda com um fio dental...
Partes do corpo feminino adornando uma matéria sobre um feminicida que
mandou esquartejar o corpo da mãe de um filho seu. Talvez isso explique porque
em nenhum momento o texto condenou ou questionou o interesse do Boa em
contratá-lo. Talvez, inconscientemente, esquartejar mulheres já faça parte de
vários processos simbólicos de nossa sociedade.
No final do ano passado, foi banida do Facebook uma foto que mostrava o
corpo de uma mulher cortado ao meio. A proposta da postagem original numa
revista australiana era perguntar aos leitores da revista (homens) qual a parte
preferida. Lendo os comentários, é fácil perceber o quanto a publicação de tal
conteúdo valida o discurso misógino do público.
Todos esses exemplos estabelecem uma relação cultural muito grave. O
corpo feminino é tão objetizado, que retalhá-lo em várias partes, seja simbólica
ou literalmente, não rende uma sanção social. Mesmo sofrendo um julgamento
legal, Bruno ainda contou com o apoio de homens que o admiravam como jogador de
futebol. É como se homens tivessem o direito de dispor do corpo feminino da
forma que lhes convêm, e, caso a mulher engravide após ele ter transado com ela
sem preservativo, ele se acha no direito de destruí-la para não assumir as
consequências financeiras de seus atos.
Nosso sistema jurídico não discute a possibilidade do criminoso ser
psicopata e ainda permite que um homicida deixe a cadeia após ter cumprido
apenas um terço da pena. Não existe nenhum tipo de agravante para feminicídios,
embora aconteçam diariamente no país cerca de doze crimes do tipo. Assim, nossa
sociedade segue validando de forma velada a constante destruição do feminino, ignorando diariamente a necessidade de criminalizar a discriminação por gênero e de tipificar o feminicídio.
Postagem original em: http://pattykirsche.blogspot.com/2013/03/feminicidio-crime-comum.html
Postagem original em: http://pattykirsche.blogspot.com/2013/03/feminicidio-crime-comum.html
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