Terça, 29 de março de 2011
unisinos
As teólogas feministas "ao resgatarem o relato mais arcaico, feminista,
da criação, elas visam propor uma alternativa mais originária e
positiva na qual apareça uma relação nova com a vida, com os gêneros,
com o poder, com o sagrado e com a sexualidade", escreve Leonardo Boff, teólogo.
Eis o artigo.
As teólogas feministas nos despertaram para traços antifeministas no
atual relato da criação de Eva (Gn 1,18-25) e da queda original (Gn
3,1-19), o que veio reforçar na cultura o preconceito contra as
mulheres. Consoante este relato, a mulher é formada da costela de Adão
que, ao vê-la, exclama: "eis os ossos de meus ossos, a carne de minha
carne; chamar-se-á varoa (hebraico: ishá) porque foi tirada do varão
(ish); por isso o varão deixará pai e mãe para se unir a sua varoa: e os
dois serão uma só carne”(2,23-25).
O sentido originário visava mostrar a unidade homem/mulher. Mas, a
anterioridade de Adão e a formação a partir de sua costela foi, porém,
interpretada como superioridade masculina. O relato da queda soa também
antifeminista: "Viu, pois, a mulher que o fruto daquela árvore era bom
para comer..tomou do fruto e o comeu; deu-o também a seu marido e
comeu; imediatamente se lhes abriram os olhos e se deram conta de que
estavam nus”(Gn 3,6-7).
Interpreta-se a mulher como sexo fraco, pois foi ela que caiu na
tentação e, a partir daí, seduziu o homem. Eis a razão de seu
submetimento histórico, agora ideologicamente justificado: "estarás sob o
poder de teu marido e ele te dominará”(Gn 3,16).
Há uma leitura mais radical, apresentada por duas teólogas feministas, entre outras: Riane Eisler (Sacred Pleasure, Sex Myth and the Politics of the Body,1995) e Françoise Gange (Les dieux menteurs 1997) que aqui resumo.
Estas autoras partem do dado histórico de que houve uma era matriarcal
anterior à patriarcal. Segundo elas, o relato do pecado original seria
introduzido no interesse do patriarcado como uma peça de culpabilização
das mulheres para arrebatar-lhes o poder e consolidar o domínio do
homem. Os ritos e os símbolos sagrados do matriarcado teriam sido
diabolizados e retroprojetados às origens na forma de um relato
primordial, com a intenção de apagar totalmente os traços do relato
feminino anterior. O atual relato do pecado original coloca em xeque os
quatro símbolos fundamentais do matriarcado.
O primeiro símbolo atacado é a mulher em si que na cultura matriarcal
representava o sexo sagrado, gerador de vida. Como tal ela simbolizava a
Grande-Mãe. Agora é feita a grande sedutora.
No segundo, desconstrói-se o símbolo da serpente que representava a
sabedoria divina que se renovava sempre como se renova a pele da
serpente.
No terceiro, desfigura-se a árvore da vida, tida como um dos símbolos
principais da vida, gestada pelas mulheres, agora colocada sob o
interdito: "não comais nem toqueis de seu fruto” (3,3).
No quarto, se distorce o caráter simbólico da sexualidade, tida como
sagrada, pois permitia o acesso ao êxtase e ao conhecimento místico,
representada pela relação homem-mulher.
Ora, o que faz o atual relato do pecado original? Inverte totalmente o
sentido profundo e verdadeiro desses símbolos. Desacraliza-os,
diaboliza-os e transforma o que era bênção em maldição.
A mulher é eternamente maldita, feita um ser inferior, sedutora do
homem que "a dominará” (Gen 3,16). O poder de dar a vida será realizado
entre dores (Gn 3,16).
A serpente será maldita, feita inimigo fidagal da mulher que lhe ferirá a cabeça mas que será mordida no calcanhar (Gn 3,15).
A árvore da vida e da sabedoria cai sob o signo do interdito. Antes, na
cultura matriarcal, comer da árvore da vida era se imbuir de
sabedoria. Agora comer dela significa perigo letal (Gn 3,3).
O laço sagrado entre o homem e a mulher é substituído pelo laço
matrimonial, ocupando o homem o lugar de chefe e a mulher de dominada
(Gn 3,16).
Aqui se operou uma desconstrução profunda do relato anterior, feminino e
sacral. Hoje todos somos, bem ou mal, reféns do relato adâmico,
antifeminista e culpabilizador como está no Gênesis.
Por que escrever sobre isso? É para reforçar o trabalho das teólogas
feministas que nos apontam quão profundas são as raízes da dominação das
mulheres. Ao resgatarem o relato mais arcaico, feminista, elas visam
propor uma alternativa mais originária e positiva na qual apareça uma
relação nova com a vida, com os gêneros, com o poder, com o sagrado e
com a sexualidade.
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