26 de junho de 2010
unisinos
Um mês depois de começar minha primeira viagem pelo Congo, palco do
conflito mais mortífero desde a 2.ª Guerra, eu já tinha ouvido um
considerável número de histórias de horror - do canibalismo forçado a
casos em que habitantes de vilarejos inteiros foram queimados vivos.
Tornei-me cada vez mais resistente ao choque de tais relatos. Mas uma
conversa com uma funcionária de agência humanitária me deixou perplexa.
O artigo é de Lisa Shannon, escritora e fundadora da Organização Run for Congo Women, publicado pelo jornal The International Herald Tribune, e reproduzido n`O Estado de S. Paulo, 26-06-2010.
Em fevereiro de 2007 cheguei a Baraka, cidade às
margens do Lago Tanganica repleta de soldados congoleses e funcionários
de agências internacionais de ajuda humanitária. Perguntei a uma
despenteada europeia que trabalhava para a ONU sobre a segurança no
local. Entusiasmada, ela descreveu seu projeto de estimação, uma
campanha em vídeo para convencer os refugiados na vizinha Tanzânia
de que era seguro voltar para casa. "As milícias estrangeiras foram
embora", disse ela. "No momento há apenas estupros e saques. Acabaram-se
os ataques." Perplexa, perguntei a ela se a alta incidência de estupros
não seria considerada um risco à segurança. "Aqui, os estupros são
muito comuns", disse ela. "É uma questão cultural."
Esta foi a primeira de muitas vezes em que ouvi a importância dos estupros em massa no Congo
ser reduzida para "algo cultural". A violência sexual no Congo está
entre as piores do mundo. A ONU estima que centenas de milhares de
mulheres tenham sido vítimas de estupros, tortura e escravidão sexual
desde o início do conflito, em 1998. Foi naquele ano que grupos armados
começaram a se comportar como máfias, lutando pelo controle dos minerais
no leste do Congo. Para garantir o controle sobre o território, as
milícias usam o estupro como arma.
Em maio, o Senado americano incluiu em sua proposta de lei para a
regulação financeira um dispositivo exigindo das empresas públicas que
se certifiquem de não comprar minerais extraídos das minas controladas
pelos milicianos no Congo. Tais iniciativas são bem-vindas, ainda que
aprovadas tão tardiamente.
Ainda assim, nós, ocidentais, temos o desagradável hábito de
facilitar as coisas e enxergar o estupro como uma parte aceita de uma
cultura estranha, e não como uma ferramenta de guerra que poderíamos
ajudar a banir. Com frequência, transformamos os homens congoleses no
inimigo, sem distingui-los daqueles que andam armados aterrorizado a
população. Ao representar a violência como um conflito entre "homens e
mulheres" ou reduzir a importância da crise como traço "cultural",
cometemos uma grande injustiça com os homens congoleses. Em vez de
ajudar, fazemos a eles um insulto implícito: sentimos muito, mas... bem,
é assim que vocês são.
Esta percepção é muito difundida. Trabalho constantemente com
congolesas, e me vejo dedicando muito tempo à defesa dos homens
congoleses, seja durante um churrasco ao discutir com um bilionário
sobre os "rituais tribais africanos de estupro" ou ao participar de um
painel ao lado de um defensor dos direitos humanos que não para de falar
a respeito das "raízes culturais da violência sexual no Congo".
Recentemente, a representante especial da ONU para os casos de violência sexual em situações de conflito, Margot Wallstrom,
descreveu esta mentalidade como "a duradoura percepção da violência
sexual como tradição, e não como tática deliberadamente escolhida".
Qualquer congolês pode lhe dizer que o estupro não é "tradicional". O crime existia no Congo
antes da guerra, assim como em outras partes do mundo. Mas a
proliferação da violência sexual deu-se com a guerra. Agora, tanto
milicianos quanto soldados congoleses usam o estupro como arma. Na
ausência de autoridade que a coibisse, a violência sexual assolou o
leste do Congo, palco de seguidos combates. Isto não
faz do estupro algo cultural; torna-o fácil de cometer. Existe uma
diferença entre as duas coisas.
Os analistas costumam falar em "cultura de impunidade" para descrever o Congo. John Prendergast,
que trabalhou por 25 anos em zonas africanas de conflito, explica: "O
estado de direito desfaz-se e os perpetradores passam a cometer crimes
sem temer a condenação e o castigo. Com o tempo, isto leva a um colapso
maior dos códigos da sociedade e do próprio tecido social de uma
comunidade."
A mídia, os funcionários das ONGs e os ativistas omitem
consistentemente as histórias de homens congoleses que foram mortos por
combatentes ao ter se recusado a estuprar. Descrever a violência no Congo
como algo "cultural" é mais do que ofensivo. É perigoso. A funcionária
europeia que descreveu a violência como traço "cultural" estava, com
isso, sugerindo que as mulheres congolesas devem ter a expectativa de
ser estupradas e se omitindo da responsabilidade de alertar as
refugiadas sobre a ameaça à sua segurança.
Quando rotulamos o estupro no Congo como algo "cultural", estamos nos eximindo de toda responsabilidade. E isto é uma questão cultural. Um traço da nossa cultura.
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