Postado em: 8 abr 2013 às 18:26
Essa frase, ouvida por muitas mulheres na hora do parto, é
uma das tantas caras da violência obstétrica que vitima uma em cada
quatro mulheres brasileiras. Eu fui uma delas
Por Andrea Dip, Agência Pública
Eu tive meu filho em um esquema conhecido por profissionais da área
da saúde como o limbo do parto: um hospital precário, porém maquiado
para parecer mais atrativo para a classe média, que atende a muitos
convênios baratos, por isso está sempre lotado, não é gratuito, mas o
atendimento lembra o pior do SUS, porém sem os profissionais capacitados
dos melhores hospitais públicos nem a infraestrutura dos hospitais
caros particulares para emergências reais.
Violência obstétrica vitima uma em cada quatro mulheres no Brasil
Durante o pré-natal, fui atendida por plantonistas sem nome. Também
não me lembro do rosto de nenhum deles. O meu nome variava conforme o
número escrito no papel de senha da fila de espera: um dia eu era 234,
outro 525. Até que, durante um desses “atendimentos” a médica resolveu
fazer um descolamento de membrana, através de um exame doloroso de
toque, para acelerar meu parto, porque minha barriga “já estava muito
grande”. Saí do consultório com muita dor e na mesma noite, em casa,
minha bolsa rompeu. Fui para o tal hospital do convênio já em trabalho
de parto.
Quando cheguei, me instalaram em uma cadeira de plástico da recepção e
informaram meus acompanhantes que eu deveria procurar outro hospital
porque aquele estava lotado. Lembro que fazia muito frio e eu estava
molhada e gelada, pois minha bolsa continuava a vazar. Fiquei muito
doente por causa disso. Minha mãe ameaçou ligar para o advogado, disse
que processaria o hospital e que eu não sairia de lá em estágio tão
avançado do trabalho de parto. Meu pai quis bater no homem da recepção.
Enquanto isso, minhas contrações aumentavam.
Antes de ser finalmente
internada, passei por um exame de toque coletivo, feito por um médico e
seus estudantes, para verificar minha dilatação.
“Já dá para ver o
cabelo do bebê, quer ver pai?” mostrava o médico para seus alunos e para
o pai do meu filho. Consigo me lembrar de poucas situações em que
fiquei tão constrangida na vida. Cerca de uma hora depois, me colocaram
em uma sala com várias mulheres. Quando uma gritava, a enfermeira dizia:
“pare de gritar, você está incomodando as outras mães, não faça
escândalo”.
Se eu posso considerar que tive alguma sorte neste momento,
foi o de terem me esquecido no fim da sala, pois não me colocaram o soro
com ocitocina sintética que acelera o parto e aumenta as contrações,
intensificando muito a dor. Hoje eu sei que se tivessem feito,
provavelmente eu teria implorado por uma cesariana, como a grande
maioria das mulheres.
Não tive direito a acompanhante. O pai do meu filho entrava na sala
de vez em quando, mas não podia ficar muito para preservar a privacidade
das outras mulheres. A moça que gritava pariu no corredor. Até que uma
enfermeira lembrou de mim e me mandou fazer força. Quando eu estava
quase dando a luz, ela gritou: “pára!” e me levou para o centro
cirúrgico. Lá me deram uma combinação de anestesia peridural com
raquidiana, sem me perguntar se eu precisava ou gostaria de ser
anestesiada, me deitaram, fizeram uma episotomia (corte na vagina) sem
meu consentimento – procedimento desnecessário na grande maioria dos
casos, segundo pesquisas da medicina moderna – empurraram a minha
barriga e puxaram meu bebê em um parto “normal”. Achei que teria meu
filho nos braços, queria ver a carinha dele, mas me mostraram de longe e
antes que eu pudesse esticar a mão para tocá-lo, levaram-no para longe
de mim. Já no quarto, tentei por três vezes levantar para ir até o
berçario e três vezes desmaiei por causa da anestesia. “Descanse um
pouco mãezinha” diziam as enfermeiras “Sossega!” Eu não queria
descansar, só estaria sossegada com meu filho junto de mim! O fotógrafo
do hospital (que eu nem sabia que estava no meu parto) veio nos vender a
primeira imagem do bebê, já limpo, vestido e penteado. Foi assim que eu
vi pela primeira vez o rostinho dele, que só chegou para mamar cerca de
4 horas depois.
Faz exatamente nove anos que tudo isso aconteceu e hoje é ainda mais
doloroso relembrar porque descobri que o que vivi não foi uma
fatalidade, ou um pesadelo: eu, como uma a cada quatro mulheres
brasileiras, fui vítima de violência obstétrica.
Uma em cada quatro mulheres sofre violência no parto
O conceito internacional de violência obstétrica define qualquer ato
ou intervenção direcionado à mulher grávida, parturiente ou puérpera
(que deu à luz recentemente), ou ao seu bebê, praticado sem o
consentimento explícito e informado da mulher e/ou em desrespeito à sua
autonomia, integridade física e mental, aos seus sentimentos, opções e
preferências.
A pesquisa “
Mulheres brasileiras e Gênero nos espaços público e privado”,
divulgada em 2010 pela Fundação Perseu Abramo, mostrou que uma em cada
quatro mulheres sofre algum tipo de violência durante o parto. As mais
comuns, segundo o estudo, são gritos, procedimentos dolorosos sem
consentimento ou informação, falta de analgesia e até negligência.
Mas
há outros tipos,
diretos ou sutis, como explica a obstetriz e ativista pelo parto
humanizado Ana Cristina Duarte: “impedir que a mulher seja acompanhada
por alguém de sua preferência, tratar uma mulher em trabalho de parto de
forma agressiva, não empática, grosseira, zombeteira, ou de qualquer
forma que a faça se sentir mal pelo tratamento recebido, tratar a mulher
de forma inferior, dando-lhe comandos e nomes infantilizados e
diminutivos, submeter a mulher a procedimentos dolorosos desnecessários
ou humilhantes, como lavagem intestinal, raspagem de pelos pubianos,
posição ginecológica com portas abertas, submeter a mulher a mais de um
exame de toque, especialmente por mais de um profissional, dar hormônios
para tornar o parto mais rápido, fazer episiotomia sem consentimento”.
“A lista é imensa e muitas nem sabem que podem chamar isso de
violência. Se você perguntar se as mulheres já passaram por ao menos uma
destas situações, provavelmente chegará a 100% dos partos no Brasil”
diz Ana Cristina, que faz parte de um grupo cada vez maior de mulheres
que, principalmente através de blogs e redes sociais, têm lutado para
denunciar a violência obstétrica tão rotineira e banalizada nos
aparelhos de saúde.
“Algumas mulheres até entendem como violência, mas a palavra é mais
associada a violência urbana, fisica, sexual” diz a psicóloga Janaína
Marques de Aguiar, autora da tese “
Violência institucional em maternidades públicas: hostilidade ao invés de acolhimento como uma questão de gênero”
que entrevistou puérperas (com até três meses de parto) e profissionais
de maternidades públicas de São Paulo. “Quando a gente fala em
violência na saúde, isso fica dificil de ser visualizado. Porque há um
senso comum de que as mulheres podem ser maltratadas, principalmente em
maternidades públicas” acredita. E dá alguns exemplos: “Duas
profissionais relataram, uma médica e uma enfermeira, que um colega na
hora de fazer um exame de toque em uma paciente, fazia brincadeiras como
‘duvido que você reclame do seu marido’ e ‘Não está gostoso?”
Em março de 2012, um grupo de blogueiras colocou no ar um
teste de violência obstétrica,
que foi respondido de forma voluntária por duas mil mulheres e
confirmou os resultados da pesquisa da Fundação Perseu Abramo. “Apesar
de não terem valor científico, os resultados mostraram que 51% das
mulheres estava insatisfeita com seu parto e apenas 45% delas disse ter
sido esclarecida sobre os todos os procedimentos obstétricos praticados
em seus corpos” lembra a jornalista mestre em ciências Ana Carolina
Franzon, uma das coordenadoras da pesquisa. “Nós quisemos mostrar para
outras mulheres que aquilo que elas tinham como desconforto do parto
era, na verdade, a violação de seus direitos.
Hoje nós somos
protagonistas das nossas vidas e quando chega no momento do parto,
perdemos a condição de sujeito” opina Ana Carolina.
Desse teste nasceu o documentário “Violência Obstétrica – A voz das
brasileiras” (que você pode assistir no fim da matéria) com depoimentos
gravados pelas próprias mulheres sobre os mais variados tipos de
humilhação e procedimentos invasivos vividos por elas no momento do
parto. Uma das participantes diz que os profissionais fizeram
comentários “sobre o cheiro de churrasco da barriga durante a cesárea”.
Mas talvez o relato mais triste seja o da mineira Ana Paula, que após
planejar um parto natural, foi ao hospital com uma complicação e, sem
qualquer explicação por parte dos profissionais, foi anestesiada,
amarrada na cama, mesmo sob protestos, submetida a episiotomia, separada
da filha, largada por várias horas em uma sala sem o marido e sem
informações. Seu bebê não resistiu e faleceu por causas obscuras. Ana
Paula denunciou o falecimento de sua filha ao Ministério da Saúde
pedindo uma investigação e em paralelo denunciou a equipe, convênio
médico e o hospital que a atenderam ao CRM de Belo Horizonte. Diante do
silêncio do Conselho, que abriu uma sindicância em novembro de 2012 e
não forneceu mais informações, a advogada de Ana Paula, Gabriella
Sallit, entrou com uma ação na justiça.
“O processo da Ana Paula foi o primeiro que trata a violência
obstetrica nestes termos. Não é um processo contra erro médico, ou pelo
fim de uma conduta médica. É sobre o procedimento, a violência no
tratar. É um marco porque é o primeiro no Brasil” explica a advogada. “É
uma ação de indenização por dano moral que lida com atos notoriamente
reconhecidos como violência obstétrica. Tudo isso tem respaldo na nossa
legislação”, diz.
Para prevenir a violência no parto, infelizmente comum, a advogada
aconselha que as mulheres escrevam uma carta de intenções com os
procedimentos que aceitam e não aceitam durante a internação. “Faça a
equipe assinar assim que chegar ao hospital. E antes de sair do
hospital, requisite seu prontuário e o do bebê. É um direito que muitas
mulheres desconhecem. Isso é mais importante do que a mala da
maternidade, fraldas e roupas. Estamos falando de algo que pode te
marcar para o resto da vida”.
Direitos legais desrespeitados nas maternidades
Além do nosso código penal e dos vários tratados internacionais que
regulam de forma geral os direitos humanos e direitos das mulheres em
especial, a
portaria 569 de 2000 do
Ministério da Saúde, que institui o Programa de Humanização no
Pré-natal e Nascimento do SUS, diz: “toda gestante tem direito a acesso
a atendimento digno e de qualidade no decorrer da gestação, parto e
puerpério” e “toda gestante tem direito à assistência ao parto e ao
puerpério e que esta seja realizada de forma humanizada e segura” e a
LEI Nº 11.108, DE 7 DE ABRIL DE 2005 garante
às parturientes o direito à presença de acompanhante durante o trabalho
de parto, parto e pós-parto imediato nos hospitais do SUS.
Mas
dificilmente essas normas são seguidas, como explica a pesquisadora
Simone Diniz
(leia entrevista na íntegra),
formada em Medicina Preventiva pela Universidade de São Paulo, que
participou da pesquisa “Nascer no Brasil: Inquérito Nacional sobre Parto
e Nascimento”, grande e minucioso panorama realizado pela Fiocruz em
parceria com o Ministério da Saúde – ainda sem data para lançamento.
“O parto é muito medicalizado e muito marcado pela hierarquia social
da mulher no Brasil. Para algumas questões de saúde, como para quem tem
HIV, precisa de um antiretroviral ou de uma cirurgia, você tem o mesmo
procedimento público e privado, existe um padrão do que é considerado
como aceitável. Para o parto não. A assistência ao parto para as
mulheres de menor renda e escolaridade e para aquelas que o IBGE chama
de pardas e negras, é muito diferente das mulheres escolarizadas, que
estão no setor privado, pagantes.
Normalmente as mulheres de renda mais
baixa têm uma assistência que não dá nenhum direito a escolha sobre
procedimentos. Os serviços atendem essas mulheres para um parto vaginal
com várias intervenções que não correspondem ao padrão ouro da
assistência, como ficar sem acompanhante e serem submetidas a
procedimentos invasivos que não deveriam ser usados a não ser com
extrema cautela, como o descolamento das membranas, que é muito
agressivo, doloroso, aumenta o risco de lesão de colo e infecções, a
ruptura da bolsa, como aceleração do parto. É uma ideia de produtividade
que parte do pressuposto que o parto é um evento desagrádavel,
degradante, humilhante, repulsivo, sujo e que portanto aquilo deve ser
encurtado. No setor público é pior, mas é preciso levar em conta que no
setor privado, 70% das mulheres nem entra em trabalho de parto, vão
direto para cesarianas eletivas”.
Cesariana desnecessária:
mais uma violência contra a mulher
A imposição de uma cesariana desnecessária também tem sido vista
pelos pesquisadores e pelas próprias mulheres como uma forma de
violência porque além de um procedimento invasivo, oferece mais riscos a
curto e longo prazo para a mãe e o bebê. “Hoje nós sabemos que existe
muito mais segurança nos partos fisiológicos do que nas cesáreas. Não
tenha dúvidas de que elas são um recurso importante que salva vidas
quando realmente necessárias. Mas no parto fisiológico o bebê tem menor
chance de ir para uma UTI neonatal, de ter problemas respiratórios,
metabólicos, infecções, tem o melhor prognóstico de todos” explica
Simone Diniz. “O bebê nasce estéril e a medida que ele entra em contato
com as bactérias da vagina durante o parto, é colonizado por elas e isso
fará com que ele desenvolva um sistema imune muito mais saudável do que
se nascer de cesárea e for contaminado por bactérias hospitalares. Esse
é conhecimento recente, mas já saíram pesquisas sobre risco
diferenciado de asma, diabete, obesidade e uma série de doenças
crônicas”.

Apesar do índice máximo de cesarianas aconselhado pela Organização
Mundial de Saúde (OMS) ser o de 15%, o Brasil lidera o ranking na
América Latina, segundo a Unicef, com mais de 50% de nascimentos através
da cirurgia. O índice sobe consideravelmente quando se olha apenas para
os hospitais particulares. Em 2010, 81,83% das crianças que nasceram
via convênios médicos, vieram ao mundo por cesarianas. Em 2011, o número
aumentou para 83,8%, segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar
(ANS). Há ainda hospitais particulares como o Santa Joana, em São Paulo,
que no primeiro trimestre de 2009 apresentou taxa de 93,18% cesarianas,
segundo o Sistema de Informações de Nascidos Vivos (SINASC).
Questionada a respeito, a ANS declarou por meio de assessoria de
imprensa que “vem trabalhando, desde 2005, para a diminuição do número
de partos cesáreos, mas o problema é bastante complexo e multifatorial,
envolvendo a organização do trabalho do médico, dos hospitais e a
própria cultura e informação da população brasileira”. Disse ainda que
“não existe limite para a realização de partos cesáreos” e que isso
depende da indicação médica.

No filme “O Renascimento do Parto”, ainda sem data de estreia no
Brasil, mas que já possui uma versão resumida no Youtube, o pediatra
Ricardo Chaves questiona: “Eu quero saber o seguinte: nós combinamos com
o bebê que ele vai nascer sexta-feira, quatro da tarde? Ele respondeu
que tem condição de nascer?”
Nos consultórios, a prática é assustar a mulher
Os profissionais têm opiniões diferentes a respeito do grande volume
de cesarianas. Para a médica obstetra representante do Conselho Regional
de Medicina de São Paulo (Cremesp) Silvana Morandini, “a medicina
defensiva está indicando mais a cesárea. Se o bebê tem circular de
cordão no pescoço, se é um feto muito grande, se tem placenta marginal,
qualquer diagnóstico que possa dar problema, aumenta a prescrição”. Ela
chama isso de “conduta defensiva”, por “medo de dar errado”. Silvana
também acredita que “o grande número de cesáreas é cultural. A mulher
brasileira tem a ideia de que com o parto vaginal vai ficar com o
perineo mais flácido”.
Já o obstetra especialista em parto humanizado Jorge Kuhn acredita
que “a grande culpada pelo boom de cesarianas foi a mudança do modelo
obstétrico. Antigamente o modelo era centrado na obstetriz. O médico era
chamado nos casos de complicação. A transformação do parto domiciliar
em hospitalar, na década de 1970, aumentou a incidência de cesarianas. É
lógico que esse índice também cresceu por outras razões, como gravidez
múltipla, idade avançada e riscos reais ”. Ele explica que outro fator
importante foi a entrada dos convênios médicos nos planos de parto.
“Eles perceberam que para vender planos de saúde, um bom argumento era o
de que a mulher faria o pré-natal com o mesmo médico que faria o parto e
isso é a maior cilada. Porque o médico prefere ficar no consultório a
sair para ganhar tão pouco. Dizem que a mulher escolhe a cesariana, mas o
parto normal é desconstruído no consultório consulta a consulta. Frases
como ‘nossa, mas esse bebê está crescendo muito’ dão a conotação
subliminar de que a mulher não poderá ter parto normal. Circular de
cordão, bacia estreita, feto grande, feto pequeno, pouco líquido, muito
líquido, pressão arterial alta, diabetes, nada disso é indicação de
cesariana.
Foi se criando o conceito de que o corpo da mulher é
defeituoso
e requer assistência.
Que ela precisa ser cortada em cima ou
embaixo para poder parir”.
Um médico obstetra com 15 anos de formação, que atende a convênios e
preferiu ter sua identidade preservada, confirma a fala de Jorge Kuhn.
Ele explica que com o valor irrisório pago pelos convênios (cerca de
300 reais por parto normal ou cesárea) não compensa para o profissional
largar o consultório cheio ou sair de casa de madrugada para passar 10,
12 horas acompanhando um parto normal. “Eu digo para as minhas pacientes
logo nas primeiras consultas que se elas optarem por marcar uma
cesariana eu farei, mas se optarem por um parto normal vão ter com
plantonista”.
Para ele, apesar das pesquisas e das indicações
internacionais como a da OMS, a cesariana é a melhor opção para a mãe e o
bebê. “No hospital particular eu acho que acontece o real parto
humanizado. Porque tem uma assistência muito maior. Com 5 para 6 cm de
dilatação a gente instala a anestesia, aí a paciente já não sente dor,
faz a tricotomia (raspagem dos pêlos) porque é mais higiênico, rompe a
bolsa, acelera o trabalho de parto. Minha filha nasceu por cesárea,
minhas sobrinhas também. Se eu achasse tão bom o parto normal teria
feito. Claro que se o médico marcar a cirurgia para muito antes, o bebê
pode nascer prematuro, com problemas respiratórios, pode complicar sua
saúde a longo prazo. Mas no parto normal existe mais risco de asfixia e
paralisia cerebral. Se você for perguntar, 90% dos filhos de médicos
nascem por cesárea”.
Jorge Kuhn, que foi recentemente denunciado pelo Conselho Regional de
Medicina do Rio de Janeiro e responde a processo no CREMESP por ter
declarado em um programa de televisão ser favorável ao parto domiciliar
para gestantes de baixo risco, lembra que para o hospital também é muito
mais lucrativo e conveniente que se façam cesarianas. “Eles sabem quais
são os recursos humanos e materiais que têm em vésperas de feriados,
principalmente os mais prolongados, e têm os agendamentos da sala
certinhos. Fazer uma cesariana em trabalho de parto resulta em maior
custo para o hospital. Quando a mulher ficou tantas horas em trabalho de
parto e passa para uma cesárea, isso é um problema. Uma vez eu
perguntei para um gestor quanto eu custava, fazendo mais partos normais.
Ele disse que o problema é quando meus partos normais viravam cesareas,
porque já tinha gasto tempo e material naquele parto e gastava com a
cirurgia. Mas tanto faz em termos de custo. O agendamento que facilita.
Nenhum hospital no Brasil tem condições de atender partos normais como a
OMS aceita, com no máximo 15% de cesarianas. Não têm estrutura física
para isso, é uma formula difícil de fechar. Mas basicamente é uma
tríade: comodidade dos médicos e hospitais, indiferença das mulheres e
mercado. Sempre é uma questão de dinheiro”.
Ana Cristina acrescenta que quanto mais complicado for o parto, mais
lucro o hospital terá. “anestesia, cirurgia, drogas, antibioticos,
compressas, equipamento, equipe de enfermagem. Se rolar uma UTI neonatal
por dois dias, já vai mais uma boa grana, quase a de um parto. E esses
equipamentos todos da UTI estão pagos, precisam ser usados para gerar
lucro. A UTI custa muito caro. Então qual é o problema? É que nós
estamos colocando bebês para nascer em uma estrutura muito cara, que
precisa se pagar”.
Para incrementar, alguns hospitais particulares oferecem alguns
“extras” a seus pacientes, conta Simone Diniz. “Existe uma coisa chamada
‘janela de plasma’, que fica no centro cirúrgico e dá para um pequeno
auditório anexo. É uma janela opaca que fica transparente quando o bebê
nasce e o médico pode apresentá-lo à plateia. Algumas famílias fazem
festas, com serviço de catering etc. Isso não pode acontecer em um parto
normal, certo? Precisa ser agendado com antecedência. Aí você vê como
hoje o parto fisiológico é subversivo, porque subverte toda essa lógica
hospitalocêntrica”.
Alternativa subversiva
O modelo alternativo, hoje conhecido como parto humanizado, se baseia
em exemplos usados há muitos anos em países como Holanda e Alemanha, e é
centrado na autonomia da mulher, pensando o parto como algo
fisiológico, natural, com pouca ou nenhuma intervenção médica. O direito
da mulher sobre o seu próprio parto também é uma das principais
bandeiras de um movimento feminino que cresce a cada dia no Brasil,
principalmente através de blogs e articulações por redes sociais.
No filme inglês
Freedom For Birth,
que conta a história da parteira húngara Ágnes Geréb, processada
criminalmente e condenada a dois anos de prisão porque, até 2011, não
havia regulamentação para os profissionais que assistiam partos
domiciliares, a antropóloga americana Robbie Davis-Floyd critica o
modelo atual, em que o corpo da mulher é tratado como uma máquina, e o
parto como um processo mecânico disfuncional, que precisa das
intervenções médicas para trazer o bebê ao mundo porque não confia na
fisiologia natural do parto. Em seu estudo “Birth as an American rite of
passage (1984)” ela lembra que o parto, até pouco tempo, era vivido
como algo exclusivamente feminino e privado, com as mulheres dando a luz
em suas casas amparadas por outras mulheres: parteiras, mães, amigas
mais experientes.
A ideia de “mulher empoderada”,
que escolhe onde, como
e com quem quer parir,
ou no mínimo opina a quais procedimentos quer ou
não se submeter
é o centro deste pensamento.
O parto humanizado pode acontecer em casas de parto, em casa (somente
para gestantes de baixo risco) e até em salas especiais que muitos
hospitais estão criando com esta finalidade. A equipe geralmente é
reduzida, com uma enfermeira obstetra (ou médico que siga esta
filosofia), um neonatologista e uma doula – profissional treinada a dar
suporte físico e emocional à mulher desde o pré-natal. Na hora do parto,
a doula orienta sobre exercícios e posições, respiração e fornece um
arsenal de recursos não farmacológicos para alívio dor, como massagens,
bolas, óleos, exercícios e banhos. A mulher pode comer, tomar água,
andar e ficar na posição que se sentir mais a vontade para parir.
Cada
vez mais mulheres têm optado por este modelo, mas nem todas têm acesso.
Um parto domiciliar custa de 5 a 10 mil reais (somando os honorários de
todos os profissionais). No hospital, além da equipe, é preciso pagar a
internação em pacotes de parto, que podem custar em média mais 8 mil
reais.
Apesar de em 2011 o governo federal ter lançado a Rede Cegonha, que
tem como objetivo humanizar o parto e criar casas de parto normal
integradas ao SUS, ainda há poucas opções e somente em grandes centros
urbanos – até 2014, segundo o Ministério da Saúde, serão 200 em todo o
país. Com pouca ou nenhuma divulgação, sobram leitos em muitas delas.
A
Casa de Parto de Sapopemba em São Paulo, por exemplo, referência no
atendimento a gestantes de baixo risco, não só não é divulgada, como não
se consegue entrevistar os profissionais que atendem na Casa. Alertada
por colegas jornalistas, eu tentei entrar em contato através da
assessoria de imprensa da prefeitura mas não obtive resposta, apesar da
insistência. Durante a reportagem, conheci uma enfermeira obstétrica que
foi demitida por ter concedido entrevista a um jornal sem autorização.
Uma reserva que faz lembrar o que acontece com os programas de redução
de danos – cala-se a respeito para evitar polêmica, ou a adesão
excessiva em relação às dimensões previstas por essas políticas
públicas.
Simone Diniz conta que a própria mulher que resolve esperar o
trabalho de parto é hostilizada.
“As pesquisas indicam que entrar em
trabalho de parto aumentam muito o risco de você sofrer violência. É
muito interessante o grau de hostilização da mulher em trabalho de
parto. No setor privado, acham o fim da picada que aquela mulher queira
dar trabalho para eles. Uma mulher contou que como insistiu muito com o
médico que queria parto normal, ele indicou um psicólogo dizendo que ela
tinha traços masoquistas!”
O Conselho Federal de Medicina é totalmente
contra o parto domiciliar. Assim como os conselhos regionais que
quiseram caçar o registro de Jorge Kuhn. O Conselho de Enfermagem
(COFEN) também tentou por muito tempo fechar o novo curso de obstetricia
da USP Leste, mas desde dezembro de 2012, o curso ganhou, através de
liminar do Ministério Público, não só o direito ao funcionamento como ao
registro específico no COFEN.
Por mim você pode cortar a mulher em quatro…
Essa “caça às bruxas do parto humanizado” não é exclusividade
brasileira – vide Àgner Gereb. Jorge Kuhn conta que quando chegou ao
Brasil após uma temporada aprendendo sobre parto humanizado na Alemanha,
foi procurar os gestores de grandes hospitais para implantar essas
técnicas de redução de cesarianas, mas que foi recebido com declarações
como
“por mim você pode cortar a mulher em quatro
desde que me entregue
um bebê bom”.
Ainda assim, o obstetra é otimista: “O filósofo
Schopenhauer dizia que toda verdade passa por três estágios: No
primeiro, ela é ridicularizada. No segundo, é rejeitada com violência.
No terceiro, é aceita como evidente por si própria. Estamos no segundo
estágio”.
Outra alternativa bonita para quem procura por um parto “empoderado” (no sentido de dar poder à mulher sobre o parto) é a
Casa Ângela,
em São Paulo. Criada pela Associação Comunitária Monte Azul, a Casa de
Parto, instalada na periferia da zona sul da cidade, se mantém com
financiamentos de parceiros nacionais e internacionais e, desde o começo
de 2012, faz uma média de 10 partos por mês, e acompanha mais de 250
mães e bebês. O nome homenageia a parteira alemã Ângela Gehrke, que nas
décadas de 1980 e 1990, atendeu a mais de 1500 mulheres da favela Monte
Azul e foi referência de parto humanizado no Brasil. Ângela morreu de um
câncer em 2001 mas o trabalho com a comunidade foi retomado alguns anos
depois.
A casa é linda, iluminada, arejada e no dia que visitei, um cheiro de
bolo assando perfumava o ambiente. Nada ali lembrava o ambiente
hospitalar. Anke Riedel, obstetra coordenadora do projeto, me conta que
por causa da grande procura de mulheres de outras regiões e até outras
cidades, a casa criou um plano de sobrevivência, no qual cobra um
pequeno valor para quem não é da comunidade. O pacote padrão, que inclui
o pré-natal, a triagem para fatores de risco no parto (as regras são
rígidas e somente as gestantes que não apresentam riscos podem ser
atendidas na casa), o parto e o acompanhamento do puerpério e do bebê
por um pediatra, custa 3.500 reais, que pode ser negociado conforme as
condições financeiras do casal. “Como não recebemos qualquer ajuda do
governo, essa foi a forma que encontramos de manter a casa e poder
atender às gestantes, além do apoio dos parceiros”. Na equipe,
obstetrizes atendem às gestantes e, em casos de urgência, a casa possui
equipamento e ambulância próprios para remoções para hospitais próximos.
Segundo Anke, algumas vezes estas remoções acontecem, mas nunca houve
uma de urgência.
Em vez de maca e soro, uma leoa com o bebê nos braços
Fui convidada a conhecer Aline, de 26 anos e seu marido Marcos, da
mesma idade, moradores da comunidade que tiveram seu bebê na casa na
noite anterior. Quando entrei no quarto, a primeira surpresa. Nada de
maca ou soro. Apenas um casal deitado em uma cama com o bebê nos braços,
com luz baixa e largos sorrisos no rosto. Aline me mostrou a pequena
Sofia, que veio ao mundo sem qualquer intervenção médica ou
farmacológica. Ela conta que o bebê nasceu na banheira, à luz de velas e
música ambiente, com o marido fazendo massagem e ajudando nas posições.
Que se apaixonou pela Casa assim que conheceu a proposta e que durante o
pré-natal, ela foi bem orientada e tratada pelo nome, ao contrário do
atendimento no posto de saúde em que era uma “mãezinha”.
Um nó aperta minha garganta, é impossível não fazer comparações.
Marcos diz que estava orgulhoso da mulher, que mais parecia uma leoa
poderosa no parto. Compara ao que já tinha visto na televisão ou nas
novelas: “Aquelas mulheres gritando, deitadas, aquele desespero. Nada
disso aconteceu. Teve hora que a enfermeira abraçava, dava beijo na
testa dela, esse afeto fez diferença. No hospital você fica vendo seu
parto acontecer.” Flashes do meu parto não param de vir à mente. Sou
feliz por Aline e Marcos. E muito revoltada por mim mesma.
Vendo e
ouvindo
essas histórias de amor, assistindo a
vídeos de
partos humanizados, dignos, nos quais as mulheres foram protagonistas
do nascimento dos seus filhos, só posso chegar a uma conclusão: Violaram
meu momento. Roubaram meu parto de mim.
* Infográficos de Emídio Pedro
Mapa da Violência obstétrica: denúncias pela internet
Depois de um parto traumático e
extremamente violento e um segundo humanizado, empoderado e em casa,
Isabella Rusconi e Carlos Pedro Sant’Ana criaram o Mapa da Violência
Obstétrica. A ferramenta é inédita no Brasil e permite ao internauta
denunciar onde e quais tipos de violência obstétrica sofreu. “Acredito
que um dos melhores modos de ter uma leitura real de um problema é
mapeando situações, dando uma leitura gráfica do problema para facilitar
a sua compreensão” explica Carlos. “Embora seja um problema invisível
para muita gente —principalmente para os homens— e silenciado por muitas
mulheres —por vergonha ou por desconhecimento de que foi vitima— é
necessário mostrar que é uma realidade agressiva no Brasil e mostrar que
existem alternativas, que é necessário criar um novo sentido de
respeito humano e mudar o modo como lidamos com o parto. Talvez
mostrando relatos de vitimas da violência obstétrica, possamos chegar a
outras mulheres que passaram por essa violência sem o saber ou sem o
reconhecer, e as arrancar de sua Sindrome de Estocolmo”…
https://violenciaobstetrica.crowdmap.com/