segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Quando é — ou não é — estupro? Por Nathalí Macedo


Postado em 06 nov 2015
fonte  DCM
Cena do programa da BBC que discutiu estupro
Cena do programa da BBC que discutiu estupro
A nova geração tem revelado uma espécie de Revolução do Pensamento acerca de crimes sexuais e especificamente da liberdade sexual da mulher. Pontos de vista antes sequer cogitados são, hoje – felizmente, diga-se de passagem – objeto de uma problematização sem dúvidas necessária.
Como resultado de um Movimento Feminista cada vez mais expressivo e de uma providencial evolução do pensamento moderno, o próprio conceito de estupro tem sido discutido e modificado nas mais variadas esferas da sociedade.
Pensando nisto, a BBC reuniu 24 adolescentes, 12 de cada sexo, para assistirem ao seguinte episódio: a jovem Gemma convida seu amigo Tom – com quem tivera um breve affair – para uma festa em uma casa e, alcoolizada, deita-se no sofá e permite que ele deite com ela, deixando claro que ficasse quieto porque ela iria dormir. O garoto deita-se e, diante da passividade dela, beija-a e tenta coloca o próprio pênis na boca da moça, que permanece imóvel.
Os 24 jovens que participaram do experimento foram indagados se estariam diante de um caso de estupro e as respostas foram, no mínimo, preocupantes: 33% declararam não saber se houve ou não consentimento por parte da garota, enquanto incríveis 17% afirmam que a garota consentiu o ato.
Esta é uma triste amostra de que, para a nova geração – independente de gênero – sexo não consetido ainda é uma questão confusa e eivada de tabus. A cultura do estupro – perpetuada desde o início dos tempos numa sociedade inegavelmente patriarcalista – deixou legados de fato de difícil desmistificação.
Alguns dos jovens que defenderam o consentimento de Gemma afirmaram que, por permitir que o garoto deitasse ao seu lado e, principalmente, por já ter havido uma relação amorosa entre eles, não se pode classificar a atitude de Tom como estupro.
Há, claramente, uma preocupante resistência em admitir que um estuprador não precisa ter uma arma ou agir com violência: basta que faça com o corpo de uma mulher qualquer coisa que ela não tenha explicitamente permitido.
De fato, a problematização do assédio – em suas mais surpreendentes facetas – é relativamente recente e assim como muitos homens naturalizam o estupro em situações cotidianas – quando não se trata de um caso escancarado de violência – muitas mulheres ainda deixam de reagir a isso que se pode chamar, por faltar termo mais adequado, de estupro velado, encoberto por um manto de “se’s” e “porque’s”.
“Se ela se deitou com ele, ela consentiu.” “Se ela convidou-o para a festa, é claro que ela queria transar com ele.” “Se ela não empurrou-o quando ele a beijou, deu um sinal verde para que ele fosse adiante.”
Acontece que, lamentavelmente, nem todas as mulheres desta geração são empoderadas o suficiente para reconhecer e reagir a um assédio, ainda que isso as afete física e psicologicamente. Assim como muitas de nós, Gemma declarou que “congelou” diante da atitude de Tom e esperou que, ante à sua passividade, ele “entendesse o recado”. Mas os homens, em geral, não são bons em ‘entender o recado’ quando se trata de sexo.
A negativa feminina ainda costuma ser encarada como uma espécie de charme que faz parte de um suposto “jogo de sedução”. Para muitos homens, mesmo quando dizemos não, queremos dizer sim – estamos apenas obedecendo à velha regra social que diz que devemos parecer pudicas, omissas, delicadas. Então, a ausência de consentimento – por mais escancarada que esteja – é, muitas vezes, ignorada.
O papel do homem nesta nova geração é, portanto, simples: compreender o óbvio. Se nós dizemos não, não queremos dizer nada além de não, e qualquer coisa que viole isso é estupro: com ou sem violência, com ou sem armas, com ou sem penetração. É o nosso corpo sendo desfrutado sem que nós permitamos.
As pessoas precisam parar de classificar o estupro apenas como a penetração vagínica forçada – esta é apenas uma dentre tantas maneiras de violência sexual. Beijar uma mulher na balada de supetão é violência, tocar seu corpo sem que ela permita é violência, encoxar uma mulher no transporte público é violência, masturbar-se diante dela sem que haja prévio consentimento é violência.
É preciso desmistificar esse discurso podre de machismo velado que diz que nossas atitudes implícitas definem se consentimos ou não, se pedimos ou não para sermos abusadas. Ninguém pede para ser abusada e nenhuma vítima pode ser culpada pela violência que sofreu. Não se pode exigir de nós, mulheres – que crescemos em uma sociedade patriarcalista que sequer nos ensinou a nos defender – uma postura clara e combativa diante dos assédios sutis, velados, cotidianos.
Então, ainda que flertemos ou dividamos o sofá com quem quer que seja, isso não é um convite: se nós quisermos fazer sexo, demonstraremos isso, como qualquer ser humano instintivamente o faz. E se não demonstramos, isso significa o mais claro e inteligível NÃO.
As pessoas só compreenderão que nenhum estupro é um mal-entendido quando pararem de buscar, nas entrelinhas, um consentimento que, de fato, não existe: roupa curta não é consentimento, embriaguez não é consentimento, passividade não é consentimento e estupradores não precisam obedecer a um esteriótipo pré-definido para serem assim classificados.
Assim, se um garoto “comum” faz sexo com uma mulher alcoolizada e que não consentiu o ato, não importa se ele é um criminoso habitual ou se usou violência física: ele É um estuprador.
Estupradores não precisam invadir nossas casas na calada da noite. Eles estão nos mais improváveis lugares: nas festas, nas ruas, no nosso próprio círculo social – porque o que define se um homem é ou não um estuprador não é o seu perfil psicológico ou social, é, simplesmente, se ele praticou ou não um estupro.
Por mais confuso que possa parecer para uma sociedade contaminada por valores deturpados e machistas, a regra é muito simples: se nós não permitimos, se nos sentimos violadas, isso é, sim, a mais nítida violência, e deve ser reconhecida e punida, por mais insignificante que pareça àqueles que não a vivenciam.
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Nathali Macedo
Sobre o Autor
Colunista, autora do livro "As Mulheres que Possuo", feminista, poetisa, aspirante a advogada e editora do portal Ingênua. Canta blues nas horas vagas.

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