Domingo, 27 de junho de 2010
unisinos
Colonialismo e apartheid fizeram da
África do Sul
recordista em crimes sexuais, com 75,6 estupros por grupo de 100 mil
habitantes. Após um período de negacionismo oficial e estigmatização,
governo e sociedade reagem à epidemia, causada por uma conjunção de
fatores sociais, políticos e culturais.
A reportagem é de
Fábio Zanini e
Laura Capriglione e publicada pelo jornal
Folha de S. Paulo, 27-06-2010.
"Ele se lembra, quando criança, de ler a palavra `rape`, estupro, em
reportagens de jornal, tentando entender exatamente o que queria dizer,
imaginando o que a letra p, sempre tão suave, estava fazendo no meio de
uma palavra considerada tão horrenda que ninguém a falava em voz alta."
Assim como a letra p não parece se encaixar naquela palavra tão horrenda, o erudito
David Lurie,
professor de literatura que cai em desgraça, parece não se encaixar em
seu país, dominado pela barbárie. Ele quer entender o que acontecera
dias antes com sua filha
Lucy, atacada por três homens no sítio em que vivia no interior da África do Sul.
Lurie é o personagem principal de "
Desonra" (trad. José Rubens Siqueira, Companhia das Letras, 2000), o romance que deu ao sul-africano
J.M. Coetzee (pronuncia-se "coutsía") seu segundo
Booker Prize, o mais prestigioso das letras britânicas. O estupro da filha de
Lurie simboliza ficcionalmente a onda de violência sexual que domina a
África do Sul.
"Ele pensa em Byron", narra
Coetzee, evocando o
poeta romântico inglês da predileção de seu refinado personagem. "Entre
as legiões de condessas e criadas em que Byron se enfiou havia sem
dúvida aquelas que chamavam o ato de estupro. Mas sem dúvida nenhuma
delas tinha por que temer terminar a sessão com a garganta cortada."
FORA DA FICÇÃO
Mais de dez anos depois da publicação do romance de
Coetzee,
o temor de ser estuprada e terminar com a garganta cortada não é
exatamente uma situação ficcional. A poucos dias do início da
Copa do Mundo, a ministra sul-africana das Mulheres, Juventude e Pessoas com Deficiências,
Noluthando Mayende-Sibiya, fez um discurso inflamado na
Cidade do Cabo. O objetivo era um só: advertir que o governo não toleraria episódios de violência sexual durante o campeonato.
Militante histórica do partido de
Nelson Mandela, o
Congresso Nacional Africano (CNA),
Mayende-Sibiya,
anunciou uma série de medidas contra a violência sexual: iluminação e
limpeza dos locais potencialmente perigosos, campanhas de vigilância
comunitária, policiamento preventivo, e criação de centros para acolher e
cuidar de vítimas.
Também foi anunciada a construção de um parque no local em que foi encontrado, em janeiro, o cadáver decomposto de
Masego Kgomo,
no distrito de Soshanguve, a 45 km de Pretória, a capital
administrativa da África do Sul. A ministra prometeu uma estátua em
homenagem a
Masego.
Aos 10 anos, ela foi sequestrada, torturada, estuprada e assassinada
por um grupo de jovens negros. Segundo a polícia, uma sangoma,
curandeira tradicional, teria estimulado o ataque.
CAMPEÃO MUNDIAL
Um relatório publicado pela ONU em 2002, com dados de 50 países,
confere à África do Sul o vergonhoso título de campeão mundial de
estupros. Logo depois vêm Canadá, EUA, Nova Zelândia e Suécia. É preciso
cautela ao analisar esse tipo de dado: eles podem significar, por
exemplo, que as mulheres desses países se sentem mais à vontade para dar
parte na polícia. Os números sul-africanos, no entanto, são eloquentes.
Uma pesquisa patrocinada pelo próprio governo sul-africano mostrou
que, em 2007, houve 75,6 estupros por grupo de 100 mil habitantes -cinco
vezes o registrado na cidade de São Paulo. Nos 12 meses contados a
partir de abril de 2008, foram mais de 70 mil queixas de crimes sexuais,
aumento de 10,5% em relação ao período anterior.
Calcula-se que sejam muito mais, pois é comum que as vítimas de
estupro se recusem a prestar queixa. Segundo a organização
não-governamental Pessoas contra o Abuso de Mulheres, apenas um em cada
nove estupros na África do Sul é denunciado à polícia. Entre eles,
apenas 7% terminam em condenação.
Índices mais chocantes dão conta
de um estupro a cada 30 segundos no país, ou 1,2 milhão de estupros por
ano. Uma pesquisa divulgada no ano passado pelo
Conselho de Pesquisa Médica da África do Sul,
com base em entrevistas com 1.738 homens, aponta que um em cada quatro
homens das Províncias de KwaZulu-Natal e do Cabo Oriental estaria
envolvido em agressões sexuais, entendidas como sexo não consentido ou
tentativa.
LENIÊNCIA OFICIAL
Rachel Jewkes e
Naeema Abrahams, pesquisadoras do Grupo de Gênero e Saúde do Conselho de Pesquisa Médica, em
Pretória, tentam explicar por que, afinal, esse tipo de violência tornou-se uma epidemia na África do Sul.
Segundo elas, existe um caldo cultural permissivo -a polícia pouco
prende, a Justiça pouco age e a sociedade ainda desconfia que a vítima
deu margem para ter sido estuprada. As pesquisadoras também relatam
rastros de corrupção na polícia: "Quando, apesar de tudo, as denúncias
são feitas, não é raro a polícia, em troca de uns trocados, `perder`
documentos e laudos que comprovam o crime".
Em
Gauteng, Província onde ficam Johannesburgo e
Pretória, somente 17,1% das queixas de estupro resultam em julgamento - e
apenas 6% em condenação. A leniência oficial termina por desencorajar
novas denúncias, num círculo vicioso de impunidade.
É comum a própria polícia abandonar o caso, em geral, por deficiência na investigação. Em 78,4% das queixas, segundo o estudo "
Tracking Justice"
(Acompanhando a Justiça), feito a partir de boletins de ocorrência, o
policial nem sequer pediu à vítima que descrevesse o agressor. Em 52,3%
dos casos, o agressor jamais foi localizado.
Em entrevista à Folha,
Bashir Hoosain, diretor-geral
de Segurança e Proteção da Província do Cabo Oriental, admite que há
problemas na coleta de provas e no trato com as vítimas. "Temos
procurado aproximar a polícia da comunidade, trazendo pessoas para
dentro das delegacias para debater conosco os problemas", diz ele. "O
número de mulheres policiais também cresceu."
REAÇÃO ARMADA
A alegada tolerância em relação ao crime, numa sociedade já violenta
após décadas de regime colonial e apartheid, teria gerado uma cultura do
estupro.
Qualquer turista em Johannesburgo se impressiona com as ameaçadoras
placas fixadas na fachada das casas: invariavelmente, fala-se em "reação
armada". O assalto a residências está entre os principais medos na
cidade, e em 90% dos casos os bandidos aproveitam para estuprar as
moradoras, segundo a polícia local.
A impressão de impunidade, dizem as pesquisadoras, também facilita o
surgimento das gangues de jovens que estupram e matam, que ficaram
tristemente famosas na Cidade do Cabo no final do século 20.
Mais do que
na vítima, o foco dos agressores está nos cúmplices. A observação do
ato funciona como rito de iniciação à vida adulta.
Um diálogo entre
David Lurie, o personagem de J.
M. Coetzee,
e sua filha, estuprada por dois homens e um jovem, sintetiza o
funcionamento das gangues: "Um excitava o outro. Deve ser por isso que
fazem juntos. Como cachorros em bando". O pai então pergunta: "E o
terceiro, o rapaz?".
Lucy responde: "Estava lá para aprender".
Assim como aconteceu com
Lucy em "
Desonra", grande parte dos estupros ocorre dentro de casa. Há dois anos, o estudo "
Tracking Justice" mostrou que
em 25% dos casos o responsável é parente, namorado ou ex-namorado da vítima. Casos como o de
Letta Majas, 39, moradora da favela de Alexandra, em Johannesburgo, são comuns.
"Toda sexta, meu namorado ia direto do trabalho para o bar", conta
ela. "Chegava em casa às 23h, querendo sexo. Um dia, eu recusei, porque
não queria dividir a cama com um bêbado de cerveja. Ele respondeu que
era porque eu estava saindo com outro homem. Me jogou contra uma parede,
me chutou e me estuprou."
Em
Johannesburgo, há dezenas de "casas seguras" para mulheres como
Letta, que não podem voltar para casa - ou serão estupradas. Em
Alexandra, a
Bombani Safe House
funciona atrás de muros altos e arame farpado. A preocupação é com a
privacidade de suas "clientes". Mais do que um eufemismo, a nomenclatura
é uma tentativa de reduzir o estigma da vítima.
CURANDEIRISMO
Quando a epidemia de Aids explodiu na África do Sul, chegou-se a
sugerir uma explicação "mágica": o surto de estupros de adolescentes
seria ligado à crença de que o sexo com "virgens puras" poderia "limpar"
o sangue de quem com elas se relacionasse.
Rachel Jewkes e
Naeema Abrahams
têm uma explicação mais pragmática: "O mais provável é que os
estupradores acreditem que, atacando uma virgem, tenham menos chances de
contrair o vírus HIV".
Uma juíza que já atuou em vários casos baixou a voz para dizer à
Folha em um restaurante de Johannesburgo: "Ninguém quer falar sobre
isso, mas é terrível o envolvimento de curandeiros e curandeiras nesse
tipo de crime. Ou praticam diretamente, ou pedem que outros o façam, a
fim de aumentar seus supostos poderes". Segundo ela, o assunto virou
tabu porque essas práticas religiosas pertencem à reclusa esfera da vida
levada segundo os ditames tradicionais.
Até 2004, o então presidente sul-africano,
Thabo Mbeki,
da etnia xhosa, acusava de "racista" a estridência mundial a respeito
da violência sexual no país. Em artigo publicado no site do
Congresso Nacional Africano,
ele escreveu: "Dizem que nossa herança africana na cultura, tradições e
religiões faz de cada homem africano um potencial estuprador. É um
ponto de vista que define todo o povo africano como selvagens bárbaros".
Mbeki investia contra a jornalista branca
Charlene Smith - ex-militante antiapartheid, ela mesma estuprada em 1999 durante assalto a sua casa -, que escreveu no jornal "
Sunday Independent" o artigo "O estupro tornou-se uma forma repugnante de vida em nossa terra".
Mbeki respondeu que, por trás das denúncias da
epidemia de estupros na África do Sul, não existiria nada além da velha
repetição dos estigmas que os colonizadores brancos e europeus sempre
quiseram colar na pele negra. Segundo ele, o povo negro seria visto como
um bando de "preguiçosos, mentirosos, de odor fétido, doentes,
corruptos, violentos, amorais, sexualmente depravados, animalescos,
selvagens -e estupradores".
A perigosa relação entre identidade nacional e barbárie já surgiu em
outros contextos históricos e culturais. Depois do Holocausto, ainda há
quem queira associar, por exemplo, os alemães a nazistas em potencial.
Não há dúvida, porém, de que reuniram-se na Alemanha do Terceiro Reich
condições específicas (algumas essencialmente culturais) que levaram o
povo alemão à barbárie nazista. O que não significa afirmar que a
barbárie esteja na identidade nacional alemã.
A ideia de "cada homem africano como um estuprador potencial"
reaparece, com sinal invertido, no relatório "Qualquer um pode ser um
estuprador", do
Centro de Estudos da Violência e Reconciliação.
O texto procura entender os fatores individuais, de relacionamento,
comunitários e sociais que levam o país a se tornar campeão dos crimes
sexuais.
Quando todos os fatores se conjugam, aí sim, "qualquer um pode se tornar um estuprador". Em qualquer país.
NEGACIONISMO
O então
presidente Mbeki não negou apenas o problema
do estupro. Sua mais famosa negação foi em relação à proliferação da
Aids no país, que não passaria de invenção da indústria farmacêutica.
Citando uma tese do pesquisador americano
Peter Duesberg,
da Universidade da Califórnia, em Berkeley, e da Academia Nacional de
Ciências dos EUA, ele sustentava que o vírus HIV não seria o causador da
AIDS. A deficiência imunológica característica da doença seria uma
decorrência da fome e dos problemas crônicos da saúde sul-africana
-herança maldita do apartheid.
Em novembro de 2008, sem políticas de prevenção ou tratamento, a
África do Sul bateu nos 365 mil mortos por Aids, 60% dos quais mulheres.
Hoje, o vírus está no sangue de mais de 5 milhões de sul-africanos (a
população é de 48 milhões).
O hospital Baragwanath, no bairro de Soweto, em
Johannesburgo,
é um gigante com mais de 4 mil leitos, considerado o maior da África.
Lá, ainda não se atendem casos de estupro que não sejam acompanhados por
lesões físicas graves: "O estupro é um problema menor para ser tratado
aqui", disse o relações-públicas à reportagem da Folha, na semana
passada. Muitos profissionais de saúde no país não veem a violência
sexual como uma questão de saúde pública, embora ela acompanhe os
índices de infecção por HIV.
Nas macas encostadas nas paredes de tijolinhos do pronto-socorro
viam-se apenas pacientes negros -vários deles esqueléticos, com as
feridas características dos doentes de Aids sem tratamento.
SURPRESA
E, no entanto, quando este texto é escrito, já se passaram 12 dias do
início da Copa do Mundo. Todas as nove cidades-sede receberam 220 mil
torcedores e turistas, fluxo várias vezes maior do que o habitual. E não
se ouviu falar em onda de estupros.
A enfermeira
Smangele Zulu, funcionária da clínica
Zolach, em Soweto, especializada em primeiros socorros, arrisca uma
hipótese: "Realmente está mudando o tratamento dispensado ao agressor e à
vítima nos casos de estupro - mais rigor para o predador, mais
acolhimento para a vítima". "
Smangele" significa "surpresa" na língua tribal.
As políticas negacionistas em relação à Aids e ao estupro sofreram o seu maior revés numa trapalhada do zulu
Jacob Zuma, presidente do país e polígamo (com três mulheres, 20 filhos e algumas namoradas). Em 2005, quando era o vice-presidente de
Mbeki, Zuma foi acusado de estuprar uma mulher de 31 anos, soropositiva e amiga de longa data de sua família. Levado aos tribunais,
Zuma disse que, sim, tivera relações sexuais com a mulher, mas por iniciativa dela. Acabou absolvido em 2006.
No tribunal, o promotor quis saber se
Zuma havia
usado preservativo. "Não." Perguntou-se então se o acusado não tivera
medo de contrair o vírus da Aids. "Não, não havia risco, porque tomei
uma ducha logo depois."
As organizações de prevenção à Aids e as feministas não demoraram a acusar
Zuma
de "irresponsável". Mas, depois do caso, viu-se que a necessidade do
uso de preservativos jamais tinha sido tão discutida na África do Sul
como naquela época.
Na disputa pelo controle do Congresso Nacional Africano, um
fragilizado Zuma, às voltas com denúncias de corrupção, concordou em
fazer uma composição política original: entregou 43% dos ministérios a
mulheres, para conseguir o apoio de mais da metade do eleitorado
sul-africano. O resultado imediato da manobra foram mulheres em situação
de muito mais poder do que jamais na história sul-africana. E o fim do
negacionismo.
REAÇÃO
O enterro da menina
Masego Kgomo, em 16 de janeiro, contou com a presença da ministra da Mulher,
Noluthando Mayende-Sibiya, da vice-ministra do Desenvolvimento Econômico,
Gwen Mahlangu Nkabinde, do secretário da Província de Gauteng para a Segurança da Comunidade,
Khabisi Mosunkutu, e da prefeita da cidade de Tshwane,
Gwen Ramokgopa.
No cemitério Zandfontein, logo depois do popular
Solly Moholo cantar uma canção gospel, seguida de hinos religiosos entoados pelo coral da escola onde
Masego estudava, o secretário
Mosunkutu
repreendeu a comunidade. "Por que as pessoas que viram a menina gritar
não fizeram nada?", perguntou ele. "Como é possível que o dono do bar
aonde os agressores levaram uma menina de 10 anos não tenha percebido
nada de errado?"
A mudança veio quando
Mosunkutu condenou os
assassinatos relacionados ao curandeirismo: "Tem gente se escondendo
atrás da nossa cultura para perpetrar atos criminosos. Precisamos deixar
claro que a nossa cultura não tem nada a ver com pedaços de corpos
humanos para rituais `muti`", disse ele, referindo-se a "trabalhos"
religiosos. "Isso não passa de criminalidade."
Corando, a prefeita de Tshwane,
Gwen Ramokgopa,
disse que é necessária a colaboração dos curandeiros tradicionais
"corretos", para que sejam extirpados aqueles que cometem crimes em nome
dos rituais "muti".
Não faltam tentativas canhestras de resolver o problema, como a
campanha oficial "Masturbe-se, Não Estupre!", lançada em 2007, ou a
"camisinha antiestupro", curioso invento da médica
Sonnet Ehlers.
O apetrecho é dotado de pequenas lâminas que supostamente ferem o
agressor e inviabilizam a conclusão do ato - embora sua eficácia ainda
esteja longe de ter sido comprovada.
O que está claro é que há uma reação institucional. Em junho de 2009,
Mayende-Sibiya fez questão de levar sua solidariedade à família de
Nadine Jantjies, menina de 7 anos que foi violentada e morta pelo tio,
Manfred Swartz, que confessou o crime.
Na ocasião, a ministra
Mayende-Sibiya disse: "Trago a
mensagem de que este governo não tolerará mais crimes de violência
sexual. E que trabalharemos para que a Justiça se faça da forma mais
rápida possível."