terça-feira, 26 de março de 2013

O Crepúsculo do feminismo

revistadehistoria 

Sucesso entre o público jovem, filme consolida a destruição da imagem assustadora do vampiro e ainda nega o legado do movimento feminista ao construir protagonista indefesa, apática e submissa

Alexandre Enrique Leitão
Eu odeio ouvir você falar sobre todas as mulheres 
como se elas fossem damas ao invés de criaturas racionais. 
Nenhuma de nós quer estar em águas calmas por toda a nossa vida. 
 Jane Austen em Persuasão


É difícil definir o que faz um filme ser ruim. Se nos guiarmos pela cinematografia de Ed Wood, considerado o pior diretor de todos os tempos, acabaremos por resumir a questão aos aspectos técnicos da obra. Esta seria a forma mais simples de identificar uma produção de baixa qualidade, apontando erros de continuidade, personagens rasos ou unidimensionais, e demonstrações de ambiguidade perceptiva - quando, por exemplo, uma cena gravada em um set externo se inicia de manhã e, cinco minutos depois, já podemos perceber que o céu está escurecendo. Desde o lançamento de Star Wars (1977), entretanto, o público de cinema vem se acostumando a considerar também como uma obrigação que os filmes, ao menos as produções norte-americanas de grande orçamento, possuam efeitos especiais de alta qualidade. Daí, passamos a adestrar nosso olhar para perceber quando uma determinada cena é gravada em um ambiente externo ou em estúdio, diante da sempre presente “tela verde”, onde técnicos em computação gráfica podem imprimir a imagem que bem entenderem. Crepúsculo, baseado no livro homônimo de Stephenie Meyer sobre o romance entre uma adolescente humana (Bella) e um vampiro centenário (Edward), parece ter conseguido preencher todos os requisitos previamente mencionados para ser considerado um filme ruim.


Repressão sexual
  O roteiro, construído em torno de diálogos entre os dois protagonistas nos quais abundam frases melodramáticas sobre amor, desejo e abnegação, tentou transmitir de maneira simbólica uma mensagem favorável à prática da abstinência sexual. Amplamente divulgada nos Estados Unidos, a tese indica que a melhor maneira de evitar a disseminação de doenças venéreas, do vírus HIV e da perspectiva de gravidez não planejadas, se dá através de uma educação que instrua os jovens a esperar até o casamento para que possam consumar relações sexuais. A metáfora desse comportamento está longe de ser sutil em Crepúsculo, no qual mais de uma vez o personagem Edward afirma ser necessário que haja certo distanciamento físico entre ele e Bella, de forma a evitar que ele ceda a seus impulsos vampirescos e beba o sangue da garota.

Considerado exemplo de narrativa risível pela crítica mundial, o filme é recheado de cenas não intencionalmente cômicas, como o momento em que Edward revela a Bella porque os vampiros não podem sair quando o dia está excessivamente ensolarado. Desvirtuando todo o mito dos sugadores de sangue desde sua encarnação moderna apresentada pelo escritor irlandês Bram Stoker em Drácula, Crepúsculo mostra um morto-vivo capaz de andar durante o dia, mas que deve se esconder de uma profusão de raios solares, pois sua pele brilha tal qual um copo de cristal refratando luz.

O campo da criatividade humana é ilimitado, e não há nenhum problema em se inventar dentro de sua infinita gama de possibilidades uma criatura que seja imortal e possua pele luminosa. O problema está em se definir esta criatura como um “vampiro”. Ao fazê-lo, seria de bom tom que um conjunto de regras historicamente construídas e, portanto, em eterno desenvolvimento, fosse seguido. Se não o é, a escolha pelo rótulo soa mais como aspecto de marketing do que como uma proposta artística. Mas este ainda não é o maior dos problemas.


A supremacia do macho
Outro aspecto determinante na conformação do caráter negativo de um filme. Trata-se da mensagem ou visão de mundo que ele busca transmitir. O caso mais flagrante é aquele deTriunfo da vontade, de 1935, dirigido por Leni Riefenstahl. Laureado por seus aspectos técnicos, a película não deixou de ser considerada uma das mais infames da história do cinema pelo fato de ser, ao cabo de todas as análises possíveis de seu conteúdo, um instrumento de propaganda do regime nazista. Crítica semelhante sofreu o recente A hora mais escura, de Kathryn Bigelow, acusado de fazer apologia ao uso da tortura pelos órgãos de informação norte-americanos na sua Guerra contra o Terrorismo.  

Crepúsculo, já assombrado por pífios efeitos especiais, como as cenas em que Edward carrega Bella em suas costas, correndo a uma velocidade sobre-humana, e aquela em que o vampiro, de camisa desabotoada, brilha em uma relva ensolarada, conseguiu adentrar também no domínio das películas que carregam um traço de opinião no mínimo discutível. Trata-se da defesa intransigente dos conservadores papéis de gênero reservados aos seus protagonistas.

  Considerável polêmica pode surgir, por exemplo, se tencionarmos chamar Bella de “a heroína da história”, afinal ela pouco ou quase nada faz ao longo da narrativa. Longe de ser um personagem ativo, é Bella quem sofre a influência unilateral de Edward, seguindo-o e se adaptando aos seus anseios a todo passo da trama. A própria personalidade de Bella parece ser formada por seu namorado-vampiro, visto que a personagem não tem o caráter definido em termos positivos, mas tão somente negativos. Isto quer dizer que ao invés de sabermos, enquanto público, quais são os interesses e gostos da jovem, vemos apenas aquilo que ela não gosta de fazer, os grupos com os quais não gosta de socializar e os contatos que preferiria não travar. A ela não interessa o clima quente do Arizona (onde vive no início da trama), o olhar atento do pai, a amizade aparentemente receptiva dos colegas de colégio, ou preocupações que ela considera mundanas. Edward, por outro lado, gosta da música impressionista de Claude Debussy, de jogar baseball e de realizar atividades ao ar livre.

No decorrer do filme, Bella passa a tomar parte em cada aspecto da vida do companheiro, assimilando-os por simbiose e passando a se definir enquanto indivíduo. Em nome desse relacionamento, ela se afasta da família e dos amigos, abandona planos futuros de estudo e de carreira, e põe a própria vida em risco. Sua vontade de se tornar uma vampira como o namorado e permanentemente fazer parte de seu mundo é encarada como natural e não subserviente.

Em Dormindo com o Inimigo, Julia Roberts vive mulher violentada pelo marido / Divulgação
A visão da mulher enquanto extensão do homem corresponde também ao papel determinado para o macho, encarnado na figura de Edward. Seguindo a lógica do roteiro, seria normal que o homem em um relacionamento exigisse a presença ininterrupta de sua companheira, observando-a onde quer que ela fosse, e mantendo o mais rígido controle sobre seu cronograma e suas amizades. Tal é demonstrado quando o personagem revela à Bella que sente a necessidade de “protegê-la”, seguindo-a constantemente.

O cavalheirismo de Edward passa então a soar mais como obsessão do que cortesia, sendo chocante que o “herói” da trama advogue esse tipo de atitude, e mais ainda que a personagem feminina não se afaste de uma investida tão violenta.


Dormindo com o inimigo
  A título de exemplo, vejamos o filme Dormindo com o Inimigo (1991), estrelado por Julia Roberts. No thriller, a atriz interpreta Laura, uma mulher oprimida pelo marido Martin, violento e compulsivo. Se pegarmos algumas das falas de Martin e de Edward será difícil saber de qual filme partiram: “Ela era a única coisa que eu já amei” (Dormindo com o Inimigo); “Você é minha vida agora” (Crepúsculo); “Eu conheço todos os seus pensamentos (...) nada pode me manter longe” (Dormindo com o Inimigo); “Você não sabe quanto tempo eu esperei por você” (Crepúsculo); “Você desapareceu inexplicavelmente, eu preciso lembrar o quanto isso me deixou preocupado?” (Dormindo com o Inimigo); “Eu gosto de olhar você dormindo. Eu acho fascinante.” (Crepúsculo); “Eu não consigo viver sem você” (Dormindo com o Inimigo); “Você é como minha própria marca pessoal de heroína” (Crepúsculo). A mesma atitude possessiva em relação à companheira é atribuída, em um filme, àquele que seria o exemplo maior de decência masculina, enquanto no outro cabe a um psicopata de altíssima periculosidade.

A diferença entre ambas as obras não é que o suspense da década de 1990 seja feminista, mas que entre o alvorecer de um mundo em processo de globalização e a primeira década do século XXI, ganhou força em países como os EUA, uma intensa mobilização política e cultural emanada por grupos de extrema-direita.

Discursos xenofóbicos, homofóbicos e misóginos passaram a ocupar o espaço central do debate político, desde que a implosão dos macromodelos na década de 1980 e, mais precisamente, a derrocada do socialismo real, pareceram cessar a oferta de alternativas de mudança social. A uma classe operária frustrada e uma classe média temerosa da nova ordem, escassa de horizontes de transformação histórica, correspondeu o anseio nostálgico pelos “velhos tempos”, um espaço temporal idealizado, onde cada indivíduo supostamente saberia seu lugar no seio do país e seria feliz no mesmo.

O discurso anti-imigração da Nova Direita europeia e aquele do filme Crepúsculo não seriam, portanto, tão distantes quanto possam parecer à primeira vista. Ambos carregam em seu núcleo a defesa intransigente de um modo de vida conservador, receoso das rápidas alterações no cotidiano comunidades fechadas, que existem na América do Norte e na Europa ao menos desde o século XIX. O fato é que a ampla distribuição de um filme com este tipo de discurso seria inimaginável no período que vai da década de 1970, quando do auge do movimento feminista, ao início dos anos 2000. Não se trata de Hollywood haver perdido o pudor, mas de um sólido mercado consumidor, receptivo à mensagem machista de Crepúsculo, ter se constituído.

E nesse caso, talvez a melhor contraproposta ao presente fenômeno cinematográfico tenha sido dada pelo próprio Ed Wood. Biografado na película que carrega seu nome, dirigida por Tim Burton (Ed Wood, 1994), o diretor, interpretado por Johnny Depp, explica à equipe de produção os objetivos que deseja atingir com o filme Glen ou Glenda, os quais abarcariam, em sua visão, a essência do cinema de qualidade: “Pessoal, estamos prestes a embarcar numa tremenda jornada: quatro dias de trabalho duro. Mas quando ela tiver acabado, nós teremos um filme que irá entreter, educar e talvez até emocionar milhões de pessoas.”

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