terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Mitos comuns sobre feminismo e como respondê-los



bulevoador



Autor: Eli Vieira*
A seguir, alguns mitos sobre feminismo. Se está sem tempo, leia apenas a descrição dos mitos em itálico, pulando exemplos e respostas.



- Que é um “machismo” às avessas, ou seja, preconceito contra homens (misandria): 

falso. Homens são beneficiados com igualdade entre gêneros capitaneada pelo feminismo pois ela implica, entre outras coisas, que eles não precisam atender a papeis idiotas de gênero, como a suposta obrigatoriedade de ser hétero, violento e grosseiro.

Exemplo: “Você é gay? Nunca achei, parece até homem”.
Resposta: A masculinidade não depende da orientação sexual, pois é uma identidade de gênero. O único critério confiável e respeitoso para julgar se alguém é homem é a autoidentificação (que não é apenas uma declaração qualquer, mas uma consistente e fidedigna expressão de como a pessoa se sente e se vê). Todos os outros critérios comumente usados falham: nem todo homem tem barba, nem todo homem tem pênis (existem homens trans, identificados como mulheres ao nascer – e que nunca se sentiram mulheres; e homens que perdem o pênis em acidentes), nem todo homem tem voz grave etc. 

É bom lembrar que usar “masculinidade” de forma honorífica, como um elogio ao caráter, é uma forma de sexismo. Não é uma virtude nem um vício ser homem. É apenas um fato da natureza e da identidade de aproximadamente metade da humanidade. 

É normal que pessoas eroticamente atraídas por características ‘masculinas’ usem ‘masculinidade’ como elogio estético, mas só pode ser um fruto de uma valorização extrema ao masculino que alguém diga “este é homem!” ou pergunte “você não é homem, não?” quando quer se referir a virtudes como a coragem, que certamente não é atributo exclusivamente masculino, mas característica de parte da humanidade: as pessoas corajosas, que podem ser homens ou não. 

Feministas criticam associações injustas de gêneros a virtudes e vícios, e tratamento desigual, pela óbvia injustiça que traz. Imagine se você vivesse num país em que ser chamado de “homenzinho” significa ser chamado de covarde. Soa justo?



- Que não atende aos interesses masculinos, sendo necessário o “masculinismo” para isso: “masculinismo” não é um nome para uma comunidade de pensadores e ativistas que realmente estejam em sua maioria preocupados com igualdade, como é o caso do feminismo. A ONG SPLC mostrou que os supostos “ativistas dos direitos dos homens” ou “masculinismo” nada mais são que grupos de ódio.

Exemplo: “É culpa das feministas que os juízes não respeitam os direitos do pai e sempre dão a guarda dos filhos para as mães após divórcios.”

Resposta: Como eu disse anteriormente, feministas não querem que uma pessoa ganhe vícios ou virtudes automaticamente apenas por identificar-se com determinado gênero. Então, se vivemos numa cultura em que existe uma crença disseminada de que é sempre a mulher quem se dá bem com crianças, e de que mulher que não tem filhos é incompleta (como se não ter filhos não fosse uma opção disponível do cardápio de escolhas de vida de uma mulher), isso é um sinal de machismo ou sexismo, coisas que são alvo da crítica e das ações feministas. Se os juízes estão realmente tendo o preconceito de que a mulher é sempre a mais apta para ter a guarda dos filhos, o que é mais provável: que estejam lendo livros feministas que apregoam igualdade em direitos, ou que estejam reproduzindo preconceitos da sociedade em que foram criados, especialmente preconceitos sobre o papel da mulher?



- Que criou leis que tratam desigualmente homens e mulheres, como a Lei Maria da Penha: 

falso. Homens podem ser atendidos pela Maria da Penha e a lei foi aplicada até em casos de violência doméstica em casais gays masculinos.

Exemplo: “As leis já proíbem agressões! Ficar fazendo leis para partes da população é criar privilégio!”

Resposta: Foi preciso que filósofos como Dworkin e Rawls queimassem suas pestanas em esforços hercúleos de identificar que consequências se seguem de cada ação dos legisladores para que os juristas modernos entendessem e percebessem que tratar todos da mesma forma, ignorando desvios na vitimização de cada grupo humano, acaba mantendo desigualdades injustas. 

O consenso hoje costuma ser que aqueles que sofrem maior dano acumulado de discriminação devem ser os alvos do maior esforço de elevação à igualdade: desiguais por injustiça devem ser tratados desigualmente por justiça. 

A literatura acadêmica acumulou inúmeros casos de desdém pelas mulheres vítimas de agressão doméstica e violência sexual em delegacias convencionais até que se percebeu a necessidade das delegacias da mulher (lembra dos juízes poderem reproduzir preconceios da sociedade ao redor? Policiais e delegados também podem cair nessa). 

É verdade que homens são mais propensos a se vitimizarem na violência urbana, mas não dá para ignorar que 

“70% dos homicídios de mulheres no Brasil são cometidos por ex-maridos e ex-namorados, na maioria das vezes, por estes não aceitarem o desejo das mulheres de ruptura do relacionamento amoroso (Saffioti: 1994)”.  

Ignorar isso na hora de tratar agressão doméstica seria como fazer campanhas de conscientização sobre o câncer de mama ignorando completamente que a maioria das vítimas são mulheres. 

Para cada problema específico do mundo natural, a ciência gera uma teoria específica. Com problemas sociais não deve ser diferente: para cada problema específico, deve haver vontade política e legislação específicas. As generalidades, que são bonitas e aceitáveis, são salvaguardadas pela Constituição. Os detalhes de como botá-las em prática são desenvolvidos em códigos, estatutos, leis orgânicas, e leis específicas como a Maria da Penha. Você conhece a história da Maria da Penha? Vale a pena conhecer.


 

Conclusões

O movimento de direitos humanos que busca a igualdade dos gêneros ganhou o nome de “feminismo” (na verdade há vários “feminismos”, mas isso os une) porque foram e ainda são as mulheres o gênero mais oprimido na maior parte do mundo. Poderia ser chamado de “pudim de leite”, não importa: não devem ser tiradas conclusões apressadas da etimologia da palavra (do fato de feminismo ter a mesma raiz da palavra “feminino”). O erro de raciocínio de tirar conclusões falsas sobre um conceito a partir da etimologia do termo que o rotula é conhecido como “falácia etimológica“.

Existem sociedades em que o gênero masculino é menos favorecido que o feminino e os homens precisam lutar por seus direitos para atingir a igualdade? Sim. São muito raras, e uma delas é Meghalaya, no leste da Índia. O Brasil, obviamente, não é uma dessas sociedades. Até hoje mulheres ganham menos para desempenhar as mesmas funções de homens e nosso parlamento tem apenas 8% de parlamentares mulheres.


Por isso, se você é a favor da igualdade entre os gêneros, você é feminista, seja você homem (cis ou trans) ou mulher (cis ou trans).
Aprenda um pouco mais:
 
- História do voto feminino no Brasil
- Filme com Hilary Swank sobre a chamada “primeira onda feminista” que conquistou o voto feminino nos EUA
Infográfico da IstoÉ mostrando a extrema juventude das conquistas das mulheres no Brasil. 


 Somente há 10 anos os homens perderam o privilégio de anular casamentos por falta de virgindade da esposa! 
A última anulação de casamento por este motivo machista da lei antiga aconteceu em 1998.



P. S.: Se depois de ler tudo isso alguns ainda insistem que feministas (que erroneamente caracterizam sempre como “as feministas”, como se não houvesse feministas que não são mulheres) têm na verdade interesses ocultos em promover a supremacia feminina sobre todos os outros gêneros, é sempre bom lembrar esta máxima do ceticismo: teóricos da conspiração são os responsáveis por evidenciar o que alegam. E evidências anedóticas sobre casos isolados, como bem lembrava Carl Sagan, não são evidências de fato, mas geralmente uma seleção enviesada de quem já tem as conclusões antes de procurar por fatos.

P. P. S.: Existem, é claro, discordâncias entre feministas. Muitos e muitas, por exemplo, acham que pode ser sexismo usar a forma gramaticalmente canônica da língua portuguesa de generalizar para o “masculino” na hora de falar no plural (os estudantes, os cientistas etc.). Não é o que eu acredito: amigos linguistas me dizem que, apesar de o Japão por exemplo ter sido e talvez ainda ser uma cultura extremamente sexista, a língua por lá soa bem ”igualitária”, não tendo essa binariedade de gêneros gramaticais. Na verdade línguas como o russo têm mais de dois gêneros gramaticais, então é apenas uma convenção e um acidente da história da língua portuguesa que nós falemos e escrevamos assim, e que os linguistas ainda chamem essas categorias de “gêneros”. 

Acho importante uma certa vigilância e alguns hábitos, como por exemplo suprimir o artigo “os” (como fiz neste post algumas vezes) ou citar ambas as formas (como também fiz aqui). Há feministas que utilizam “x” e “@” no lugar das vogais indicativas de gênero gramatical em sufixos. Tenho quatro objeções a isso, uma subjetiva e três objetivas: é esteticamente pouco atraente (subjetiva); atrapalha e distrai na hora de ler (objetiva); no fim não leva a grandes mudanças porque a língua falada é dominante (sempre será porque é falando que aprendemos) e esses caracteres nesses lugares são impronunciáveis (objetiva); traz desconfiança aos leitores pois faz textos feministas parecerem coisa de uma comunidade hermética com maneirismos de escrita, como se fosse uma tribo urbana, em vez de um grupo de ativistas que recebe a todas e todos (objetiva).
P. P. P. S. (o último!): Gêneros são fenômenos naturais da cultura e da biologia, parte indissociável da natureza humana, e portanto são objeto de pesquisa e há questões da pesquisa que estão em aberto. Há escolas de pensamento que defendem que não é um fenômeno discreto, ou seja, que há um espectro contínuo de identidades possíveis entre a masculinidade e a feminilidade. Há outras que negam que gênero se restrinja ao binário de masculino e feminino, e citam como evidência culturas em que há mais de dois gêneros (como em Samoa, em que além de homem e mulher há “fa’afafine”). Finalmente, há acadêmicos que alegam que gênero não é uma questão de identidade, mas de “performatividade”: não dizem respeito ao que você é, mas ao que você faz. Simpatizo com algumas dessas escolas, especialmente como geneticista, pois espero uma variação genética substancial entre humanos que serve como arcabouço para mais variação originada da influência do ambiente, especialmente a cultura. Recursos genéticos e recursos culturais são igualmente importantes na manifestação de nosso infinito (às vezes literalmente infinito) repertório comportamental.

* Eli Vieira foi o primeiro presidente da LiHS, é biólogo, mestre em genética e biologia molecular, e estudante de doutorado na University of Cambridge.

2 comentários:

  1. O problema não está na filosofia, está nas seguidoras.

    O feminismo está para a igualdade com seu ativismo...
    ...como a igreja católica está para a salvação do mundo com as cruzadas.

    Medite nisso.

    Paz.

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    Respostas
    1. mas que comparação mais sem pé nem cabeça!
      tenha dó!

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