sábado, 19 de janeiro de 2013

O estupro como arma de guerra

26 de junho de 2010

unisinos

Um mês depois de começar minha primeira viagem pelo Congo, palco do conflito mais mortífero desde a 2.ª Guerra, eu já tinha ouvido um considerável número de histórias de horror - do canibalismo forçado a casos em que habitantes de vilarejos inteiros foram queimados vivos. Tornei-me cada vez mais resistente ao choque de tais relatos. Mas uma conversa com uma funcionária de agência humanitária me deixou perplexa.

O artigo é de Lisa Shannon, escritora e fundadora da Organização Run for Congo Women, publicado pelo jornal The International Herald Tribune, e reproduzido n`O Estado de S. Paulo, 26-06-2010.

Em fevereiro de 2007 cheguei a Baraka, cidade às margens do Lago Tanganica repleta de soldados congoleses e funcionários de agências internacionais de ajuda humanitária. Perguntei a uma despenteada europeia que trabalhava para a ONU sobre a segurança no local. Entusiasmada, ela descreveu seu projeto de estimação, uma campanha em vídeo para convencer os refugiados na vizinha Tanzânia de que era seguro voltar para casa. "As milícias estrangeiras foram embora", disse ela. "No momento há apenas estupros e saques. Acabaram-se os ataques." Perplexa, perguntei a ela se a alta incidência de estupros não seria considerada um risco à segurança. "Aqui, os estupros são muito comuns", disse ela. "É uma questão cultural."

Esta foi a primeira de muitas vezes em que ouvi a importância dos estupros em massa no Congo ser reduzida para "algo cultural". A violência sexual no Congo está entre as piores do mundo. A ONU estima que centenas de milhares de mulheres tenham sido vítimas de estupros, tortura e escravidão sexual desde o início do conflito, em 1998. Foi naquele ano que grupos armados começaram a se comportar como máfias, lutando pelo controle dos minerais no leste do Congo. Para garantir o controle sobre o território, as milícias usam o estupro como arma.

Em maio, o Senado americano incluiu em sua proposta de lei para a regulação financeira um dispositivo exigindo das empresas públicas que se certifiquem de não comprar minerais extraídos das minas controladas pelos milicianos no Congo. Tais iniciativas são bem-vindas, ainda que aprovadas tão tardiamente.

 Ainda assim, nós, ocidentais, temos o desagradável hábito de facilitar as coisas e enxergar o estupro como uma parte aceita de uma cultura estranha, e não como uma ferramenta de guerra que poderíamos ajudar a banir. Com frequência, transformamos os homens congoleses no inimigo, sem distingui-los daqueles que andam armados aterrorizado a população. Ao representar a violência como um conflito entre "homens e mulheres" ou reduzir a importância da crise como traço "cultural", cometemos uma grande injustiça com os homens congoleses. Em vez de ajudar, fazemos a eles um insulto implícito: sentimos muito, mas... bem, é assim que vocês são.

Esta percepção é muito difundida. Trabalho constantemente com congolesas, e me vejo dedicando muito tempo à defesa dos homens congoleses, seja durante um churrasco ao discutir com um bilionário sobre os "rituais tribais africanos de estupro" ou ao participar de um painel ao lado de um defensor dos direitos humanos que não para de falar a respeito das "raízes culturais da violência sexual no Congo".

Recentemente, a representante especial da ONU para os casos de violência sexual em situações de conflito, Margot Wallstrom, descreveu esta mentalidade como "a duradoura percepção da violência sexual como tradição, e não como tática deliberadamente escolhida".

Qualquer congolês pode lhe dizer que o estupro não é "tradicional". O crime existia no Congo antes da guerra, assim como em outras partes do mundo. Mas a proliferação da violência sexual deu-se com a guerra. Agora, tanto milicianos quanto soldados congoleses usam o estupro como arma. Na ausência de autoridade que a coibisse, a violência sexual assolou o leste do Congo, palco de seguidos combates. Isto não faz do estupro algo cultural; torna-o fácil de cometer. Existe uma diferença entre as duas coisas.

Os analistas costumam falar em "cultura de impunidade" para descrever o Congo. John Prendergast, que trabalhou por 25 anos em zonas africanas de conflito, explica: "O estado de direito desfaz-se e os perpetradores passam a cometer crimes sem temer a condenação e o castigo. Com o tempo, isto leva a um colapso maior dos códigos da sociedade e do próprio tecido social de uma comunidade."

A mídia, os funcionários das ONGs e os ativistas omitem consistentemente as histórias de homens congoleses que foram mortos por combatentes ao ter se recusado a estuprar. Descrever a violência no Congo como algo "cultural" é mais do que ofensivo. É perigoso. A funcionária europeia que descreveu a violência como traço "cultural" estava, com isso, sugerindo que as mulheres congolesas devem ter a expectativa de ser estupradas e se omitindo da responsabilidade de alertar as refugiadas sobre a ameaça à sua segurança.

Quando rotulamos o estupro no Congo como algo "cultural", estamos nos eximindo de toda responsabilidade. E isto é uma questão cultural. Um traço da nossa cultura.

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